Celebração do lançamento do livro “SiDURi ~ O Abraço Abundante e Alquímico do Submundo”

Edição de Autor

O Nectar de Siduri

{sonhar com o jardim e o néctar, de volta à vida}

Há uns meses lancei o mini-livro de “SiDURi ~ O Abraço Abundante e Alquímico do Submundo”, mas nunca cheguei a contar como Siduri se deu a conhecer. Deixo agora o sonho-oferenda desses primeiros contactos, que ainda hoje me ancoram. Sonhado repetidamente na primavera e verão de 2023.

Encontrei-me ali. Uma e outra vez fui ali ter, sem saber. Noite após noite encaminhei-me para aquele lugar misterioso.

Uma e outra vez, ela deu-me o braço e caminhamos em conjunto pelo meio das árvores e arbustos, sob um chão vivo, preto e nutritivo. Espectros de cores cintilavam do chão ao céu, flores reluziam, insectos de corpos lustrosos zumbiam e faiscavam, pássaros de penas coloridas e flamejantes cantavam, enchendo o ar. As águas e a brisa tamborilavam ritmicamente pelas pedras, gotejando e passando pelo lugar.

Aqui, no arcano e primevo jardim-templo, na confluência dos quatro rios, mesmo à beira do submundo, as árvores dobram-se pelo peso dos frutos sumarentos e coloridos, os arbustos rebentam de bagas coradas e as flores dançam ao vento. Sabores e aromas misturam-se, numa fartura gotejante e abundante. Neste jardim, as ancestrais alfarrobeiras, cedros, figueiras, oliveiras, framboeseiras, tamareiras, macieiras, romãzeiras e videiras, doces, maduras e fecundas, nascem de um chão escuro e que pulsa de morte, a que alimenta a vida. A fermentação sagrada que transmuta.

“Senta-te nessa pedra” disse-me. E quando me baixo para me sentar, sou levada pelo encanto do chão. Preto, escuro, úbere e seminal. Uma barriga primal e alquímica, que transforma o luto e a dor em vida e amor. Que decompõe os tormentos, digerindo as amarguras. É um chão fervente e vivo de morte, um interstício abissal. O chão e o coração pulsam em conjunto. O chão feito da nutritiva decomposição dos cacos, dores, tristezas, transformações, paixões, desafios. Mas também das alegrias, pois é o chão fecundo que permite a regeneração. Um lugar potente e poroso que abraça e transforma, uma passagem e descanso entre dimensões, de repouso e vagar, a derradeira pausa no caminho para a morte ou no resgate da vida.

Sou despertada deste fascínio pelo toque suave e quente da sua mão que me oferece uma bebida doce e fermentada. Um néctar que me aquece o peito, acolhendo a minha fragilidade e vulnerabilidade. Ela desdobra-se numa presença que oferece colo, atenção e ternura, escuta e cuidado. O meu corpo criatura é tomado e envolvido neste convite e abraço, neste sacramento de volta à vida. Convulsiona e remexe. Retorna.

Quando Siduri me convidou e fertilizou os meus sonhos, uma e outra vez bebi do seu copo. Noite após noite aceitei o convite de tragar o néctar, de espalhar a ambrósia como unguento pelo corpo.

Foi assim que Siduri se deu a conhecer, foi assim que me acolheu e transformou, num ritual imemorial de mudança de pele.  

"Psique recebendo néctar de Hebe na presença do amor celestial", de John Gibson<br />
Imagem original de domínio público do Museu Getty

“Psique a receber néctar de Hebe na presença do amor celestial”, de John Gibson
Imagem original de domínio público do Museu Getty

Eco-Mitologia do Néctar

{néctar, ambrósia e elixir}

  • Néctar vem do latim nectar, do grego nektar, nome da bebida dos deuses, que talvez seja um antigo composto poético indo-europeu de nek- “morte” (da raiz *nek- “morte”) + -tar “superação”, da raiz *tere- “atravessar, passar através, superar”.
  • Ambrósia, vem do latim e grego ambrosia, “comida dos deuses”, “divino”, provavelmente literalmente “dos imortais”, de ambrotos “imortal, imperecível”; mas também ligado a esfregar os mortos.
  • Elixir, do árabe al-iksir “a pedra filosofal”, provavelmente do grego tardio xerion “pó para secar feridas”, de xeros “seco”. Mais tarde, em uso médico, para “uma tintura com mais de uma base”. O sentido geral de “tónico forte” é da década de 1590.

Néctar e Ambrósia têm sido associados ao mel silvestre, um ingrediente familiar desde tempos arcanos. Há autores que equacionam a ambrósia como pão (alimento produto da fermentação, tal como a cerveja, vinho ou queijo), mas a ambrósia era usada como unguento ou como aplicação de limpeza. Sendo também equacionada como gordura liquefacta (tutano e gordura) com a seiva vegetal análoga, o azeite, como alternativa. Era uma oferta aos deuses, “coisa para ungir”. A ambrósia é utilizada por Hera como substância de limpeza do seu próprio corpo, que após abluir a sua pele com ambrósia, ‘ungia-se com azeite ambrosial perfumado’. Seria, portanto, natural dizer que o óleo usado pela deusa como unguento era próprio para ser comido, ou seja, era da melhor qualidade. O Hino Homérico a Afrodite sugere que se tratava de alimento líquido, tal como Safo. No Hino Homérico a Deméter a deusa alimenta o bebé Demofonte, fazendo-o crescer ‘não com milho para comer ou leite’ tomado através dos lábios, mas “ungindo-o com ambrósia”, acreditava-se que, ao ungir com gordura ou óleo, o líquido da vida era infundido através da pele.

O azeite é uma das possibilidades da ambrósia enquanto unguento divino comestível: “Para atormentar Tântalo, sobre a sua cabeça altas árvores pendiam os seus frutos, pereiras e romãzeiras e macieiras com frutos brilhantes e doces figueiras e oliveiras em flor, que quando o velho estendia as mãos para as agarrar, o vento atirava para as nuvens sombrias”.

Onde é que os deuses iam buscar a ambrósia? Se a questão fosse levantada, a resposta mais simples seria que, algures, inacessível ao comum dos mortais, ela brotava ou crescia como uma planta com seiva oleosa, como a oliveira ou a mirra. Homero não nos diz mais nada sobre ela, exceto que o deus-rio Simoeis “fazia subir ambrósia para os cavalos de Hera se alimentarem”; e que as pombas levavam ambrósia a Zeus pelo caminho de regresso de Ulisses de Okeanos e do submundo. Eurípides pensou nas “fontes de ambrósia”, na terra do entardecer, nos confins do mundo, “junto aos sofás nupciais dos salões de Zeus, onde a Terra divina, vivificante, aumenta a felicidade dos deuses”. A terra do entardecer, no rio Okeanos, nos confins do mundo. Deve ser perto do jardim onde Siduri me acolheu.

O néctar deve ser o equivalente divino da outra forma de alimento que os homens consideraram apropriado oferecer aos deuses – o vinho ou cerveja, ambas bebidas fermentadas preparadas pela Deusa Taberneira no Jardim, que as amassa com mel e tâmaras. As alusões implicam que era líquido. Tal como o vinho, é “misturado” e derramado para os deuses. Safo relata a libação de ambrósia num casamento, que sugere ser vinho, mas um líquido misturado de água pura, azeite e uma coleção de sementes. Mas também há referências a um frasco de óleo, como quando, no casamento de Helena, as criadas espartanas dizem que vão à árvore de Helena e derramam libação, “pingam líquido de um frasco de prata”– lembrando que os Deuses ofereceram a Siduri recipientes de ouro e prata para misturar o mosto e fazer a fermentação.

A ambrósia toma forma como óleo enriquecido com outros ingredientes, e o néctar como vinho enriquecido, como uma bebida/comida antiga onde o queijo, a cevada e o mel são misturados com o vinho. Ou como a gordura oferecida aos deuses pelos homens (à qual relacionámos a ambrósia) enriquecida com grãos de cevada, como Siduri amassa na cova do chão da morte e da vida.

Os gregos preservaram estes sacramentos milenares, a ambrósia, semelhante ao óleo ou à gordura, e o néctar, semelhante ao vinho, nos Hinos Homéricos. Para Aristófanes, a ambrósia é “derramada”, mas é comida, enquanto o vinho é descrito como “gota de néctar”. A ambrósia não só é oferecida pelos homens aos deuses, mas também é esfregada nos ossos dos mortos; o néctar não só com o vinho oferecido pelos homens aos deuses, mas também é derramado nos ossos dos mortos. Abrindo a relação profunda à muito anterior e arcana, guardiã Siduri com as bebidas fermentadas mesmo à beira do submundo.

O mel também aparece em relação com os mortos. “Por todos os mortos”, Ulisses “derramou primeiro com mistura de mel (mel com água ou leite, ou vinho), depois com vinho doce, e da terceira vez com água e polvilhou com cevada branca”. O mel parece ter sido um substituto do vinho quando este era inconveniente. O vinho era “doce como o mel” e o mel era misturado com o vinho.

A ambrósia é o líquido oleoso ou gorduroso e o néctar o líquido aquoso da vida.

Na antiga crença persa, o alimento da imortalidade consistia na seiva do haoma celeste (como o sumo da videira) e na medula do boi morto. Mais tarde, o mitraísmo ensinou que o deus virá à terra e os mortos se levantarão dos seus túmulos e ele sacrificará o touro divino e, misturando a sua gordura com o vinho sagrado, oferecerá aos justos o cálice da vida eterna. Os mesmos elementos podem ser vistos no batismo cristão, da água pura e do vinho-sangue. A água e o óleo eram usados nas primeiras formas do rito sacramental.

Estes sacramentos, seja em forma de unguento, seja em bebidas fermentadas e misturadas com sementes, água ou mel, fazem parte da paisagem e ecossistemas mediterrânicos. A sua composição e mistura não são um pormenor, mas poderosas chaves eco-mitológicas, vivas e contextuais.

Os ingredientes – cuja etimologia vem de “caminhar e ir” – são entidades mais-que-humanas destes territórios, poderosos símbolos de conexão entre dimensões e seres que ainda compõem as nossas paisagens e alimentação. Com ou sem sacramento ainda fazem parte de nós. Pontes para deuses antigos e lugares míticos, que os ossos se recordam: o azeite, o mel ou o vinho. Das águas, do leite e das sementes. Passagens para o Jardim das delícias, abundância e sabedoria, de como podemos mudar de pele e sermos guardiões da ecologia e dos mitos de novo.

Tal como Siduri que me trouxe a estas terras míticas, de morte e vida, tal como me puxou de volta à vida pelo seu colo, bebida e unguento, que recordemos em conjunto. Voltando mesmo aqui, às múltiplas e fundas histórias dos ecossistemas que nos envolvem. À abundância imanente e eco-mítica que nos ancora e acolhe.

Referências:

Outros Artigos de Eco-Mitologia

🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência. 

Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.