3 MINUTOS DE LEITURA

O Sonho da Velha

O calor do meio-dia adormeceu-a, com a sua pele selvagem e áspera aquecida pelo sol, a avó caiu nos sonhos do mundo, reclamando memórias profundas, recordações da sua longa vida. O devaneio trouxe-a de volta ao tempo em que ainda era soberana, quando os homens lhe chamavam Anciã – ela sentia falta da presença e sombra dos antigos carvalhos e castanheiros e das águas frescas e doces que por ali passavam. Juntos, durante milénios, foram os cuidadores da vibrante vida que se desenrolava à sua volta: desde fungos e musgos a ursos, castores e humanos. Os antigos clãs humanos pediam permissão, contavam histórias, cantavam canções e deixavam oferendas – as comunidades pediam conselhos e sabiam como os escutar. Uma grande família feita de granito, casca, pele, pêlo, escamas e penas. O corpo plutónico da Velha Granito ainda conseguia ouvir ecos ténues das danças e das muitas vozes que as cantavam. Tambores rítmicos, pés a bater, gritos do coração, melodias de pássaros, uivos e rugidos. Juntos, conversas sussurradas, segredos partilhados, relatos comunitários, histórias reveladas, rumores proféticos e cerimónias sensoriais. Alegrias e luto. Rituais colectivos e dor viva. Com o seu vasto coração cristalino e granular profundamente enterrado no chão, a avó regozija-se com os fantasmas cintilantes destas conversas nutritivas e vibrantes de parentesco multi-espécies. Ao contrário da fraca memória humana, a sua profunda recordação mineral não esqueceu que, antes do grande silenciamento, os parentes cantavam com os ventos, as tempestades, as pedras e a lama.

A Velha Pedra de Granito revisitou repetidamente o desenrolar destes últimos momentos, tempos breves para um ser antigo como ela: de como ficou sozinha, seca, e quente, com o grande silêncio a instalar-se à sua volta.

Durante muito tempo a Avó observou o corte de árvores, galhos, madeira e casca, em ferramentas, casas e barcos, lenha para cozinhar, aquecimento e iluminação, carvão para fornos e escrita e cinzas para sabão. Mas as atitudes mudaram, e as árvores, como as Pedras e os Rios, deixaram de ser invioláveis; agora o divino estava apenas no céu. As comunidades humanas deixaram de ouvir os gritos do Solo e da Floresta, cortando e queimando indiscriminadamente. Vorazmente. Os homens sucumbiram à guerra, ao medo, ao frio e à fome, esquecendo-se de que estes Anciãos mais-que-humanos eram a sua família e os guardiões originais. Os humanos cortaram os seus laços de parentesco, ignorando as canções e as histórias das Árvores e das Pedras, e desprezando a antiga sabedoria do Fogo. Por fim, acabaram por se esquecer. Estas comunidades humanas, recentemente órfãs e mutiladas, apenas se lembravam da dor e do sofrimento. O vasto e tempestuoso corpo da Anciã Granítica, lembrava-se de quando as suas irmãs Árvores não resistiram aos rápidos e violentos cortes de homens famintos. Ávidos, sôfregos, sedentos, esfaimados e esfarrapados. Devido aos intensos fogos, à amputação acelerada, e à plantação forçada de monocultura de pinheiros, os animais que procuravam refúgio no bosque vibrante também começaram a desaparecer. Os ursos foram caçados até à extinção porque os reis ansiavam pelas suas mãos como troféus. Os castores foram despojados das suas peles e também desapareceram, pois sem as Árvores e as suas raízes, a água não ficava, secando tudo. A Avó Granito viu-se nua e sozinha sob o sol escaldante. 

Embora, não só a fome e a miséria movessem a forçada extracção humana, a ganância e o desejo insaciável também aniquilavam o lugar. As casas e os novos navios de conquista cresceram, os fornos de vidro e de cal mais quentes, as linhas mais direitas, as paredes mais altas, e a diversidade tragicamente a diminuir. Na sua aparente impassividade plutónica, a Velha Granito, observou como os homens já não pediam consentimento; apenas perfuravam, cortavam, rasgavam e acumulavam, pilhando terras para as suas culturas e casas, enquanto os rebanhos domésticos comiam o pouco que restava. Mas nada saciou a fome humana.

A avó acorda na terra estéril à sua volta, pilhada por homens que para se fazerem ao mar destruíram o que havia em terra. A Velha anseia por novamente escutar e contar histórias vibrantes e nutritivas. E, na sua vasta vida de revoluções internas e abissais, talvez ela pode testemunhar o regresso dos carvalhos e dos castanheiros, das águas, dos ursos, e dos castores.

Chegamos aqui ao Século XXI e entendemos que a crise é de percepção, da floresta como apenas recurso, da iliteracia de confundir monocultura com floresta plena de biodiverdidade.

Este infográfico chega apenas ao século XV, nem perto das políticas de monocultura e mineração do final do século XX. Serve como base para entender que não é uma questão de gestão da floresta, mas do entendimento que é uma floresta. Ao ser silenciada como recurso inerte para uso exclusivamente humano, esvai-se pelas nossas próprias mãos. Nos necessários grandes ciclos de regeneração, só as pedras poderão presenciar uma mudança.

Referências:

  • https://www.publico.pt/2017/12/09/ciencia/noticia/como-se-extinguiu-o-ursopardo-em-portugal-1795132
  • Jorge Paiva – “A relevância da fitodiversidade no Montemuro”
  • Francisco Álvares e José Domingues – “PRESENÇA HISTÓRICA DO URSO EM PORTUGAL E TESTEMUNHOS DA SUA RELAÇÃO COM AS COMUNIDADES RURAIS”

  • M. T. ANTUNES – “Castor fiber na gruta do Caldeirão, Existência, distribuição e extinção do castor em Portugal”

  • Nicole Devy – Vareta – “Para uma geografia histórica da floresta portuguesa, AS MATAS MEDIEVAIS E A «COUTADA VELHA» DO REI”

  • Nicole Devy – Vareta – “Para uma geografia histórica da floresta portuguesa, DO DECLÍNIO DAS MATAS MEDIEVAIS À POLÍTICA FLORESTAL DO RENASCIMENTO (séc. XV e XVI)”

Esta história faz parte de um ciclo de pequenos contos, que escrevi sobre perdas que nos afectam a todos. São histórias que demorei muito a escrever, seja pela pesquisa para a redigir, seja pela sua dureza. São contos desafiantes por nos questionarem visceralmente, muito para além da articulação verbal ou da compreensão estritamente racional. Mantemo-nos nesse lugar de não saber e sem esconder a sensação de vergonha ou culpa, aqui o coração pulsa e recorda-se do mamífero íntegro que nos habita, acolhendo com carinho as frágeis emoções, aquelas que nos fazem relacionar e pertencer.

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