2 MINUTOS DE LEITURA

A Última Cabra Brava

Desde tempos imemoriais que viviam ali, no meio das pedras e dos penhascos. Clãs irrequietos que pululavam pelas serranias, cabriolavam atravessando os abismos e as pedras instáveis de um pulo. Pela sua perícia, mastigavam os brotos que nasciam no meio das pedras, cheiravam as tempestades e ouviam o chão pelos cascos sensíveis. No inverno aninhavam-se nas covas das alturas ventosas, em ninhos de corpos familiares e quentes, debaixo das estrelas. No início da primavera, os machos, com os seus longos chifres, lutavam por território e pelo direito de procriar. 

Lá, no topo das serras, sentiam-se à beira do mundo, a tocar o céu com os seus cornos torcidos. Animais orgulhosos e soberanos, das pedras e dos ventos.

Medo? Só tinham dos lobos, das matilhas que se escondiam nas sombras e ousavam segui-los pelos caminhos tortuosos. O seu bravo equilíbrio caprino geralmente deixava-os para trás. Humanos também os caçavam, pela carne, pela pele e pêlo, pelos cornos como troféu e pelo bezoar, a pedra mágica que carregavam no intestino. As pessoas diziam que os poderes do bezoar diagnosticavam e curavam maleitas da raiva. Mas, na caçada corpo a corpo, a destreza das cabras serranas, nas subidas íngremes, sempre as ajudava a escapar.

Mas, os tempos mudaram e as ferramentas dos homens transformaram-se, agora mais velozes e certeiras. Balas passaram a voar pelas serras, matando à distância. A fuga cada vez mais difícil. Escapar cada vez mais impossível. Os clãs das cabras bravas cada vez mais reduzidos. Famílias pequenas em fuga perpétua pelo terreno instável. Os seus cornos um troféu cada vez mais procurado, o seu bezoar uma magia cada vez solicitada.

Agora, ambos, lobos e Cabras, desapareciam rapidamente, em constantes batidas para manter pasto e segurança dos rebanhos domésticos. As Cabras Bravas, esventradas, dizimadas e diminuídas por enfermidades do gado doméstico, foram desaparecendo das cercanias. Já não se escutava o seu balir ou o choque trovejante dos seus cornos nas lutas de primavera.

No dia 20 de Setembro de 1890, desceu a Albergaria, vinda do Rio do Forno, a última Cabra Brava. Vinha sozinha e desorientada. Cansada e perdida. Há muito que andava pela serra à procura do seu clã perdido, balindo sem resposta. Sem família. Só. Nem sabia que era a última. Pelo cansaço e exaustão, desceu em vez de subir. Habituada aos terrenos pedregosos, ficou facilmente atolada na lama, produto das chuvas dos dias anteriores. Os homens, aos berros, dispararam um tiro que não a atingiu, mas a fuga fê-la atolar-se mais fundo. Cercam-na, deitam-lhe a mão, aprisionam-na. Nem nunca tinham visto uma cabra da serra viva. E nunca mais voltaram a ver.

Era a última Cabra Brava.

O Íbex-português ou cabra-montesa (Capra pyrenaica lusitanica) é uma subespécie extinta do íbex-ibérico, que habitou as zonas montanhosas do norte de Portugal, Galiza, Astúrias e oeste de Cantábria. Último e único espécime fotografado, capturado em Albergaria, Portugal, a 20 de setembro de 1890.

Em 1992, a subspécie Capra pyrenaica victoriae foi reintroduzida na Galiza, cruzando a fronteira para Portugal e repovoando o antigo território ocupado pelo íbex-português no Gerês. 

Os incêndios e a caça desregulada terão sido as principais causas do desaparecimento desta espécie, que durante séculos foi das mais presentes na região do Gerês. Exemplo disso é um relato do século XVII, onde o padre Carvalho da Costa descreve a serra do Gerês como um lugar diferente de “CABRAS BRAVAS COM FEROZES CABRÕES.” (parágrafo adaptado daqui)

Esta história faz parte de um ciclo de pequenos contos, que escrevi sobre perdas que nos afectam a todos. São histórias que demorei muito a escrever, seja pela pesquisa para a redigir, seja pela sua dureza. São contos desafiantes por nos questionarem visceralmente, muito para além da articulação verbal ou da compreensão estritamente racional. Mantemo-nos nesse lugar de não saber e sem esconder a sensação de vergonha ou culpa, aqui o coração pulsa e recorda-se do mamífero íntegro que nos habita, acolhendo com carinho as frágeis emoções, aquelas que nos fazem relacionar e pertencer.

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Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.