As três Senhoras

Adaptação do conto irlandês das Três Senhoras Verdes; Re-fabulado e escrito para o 1º Encontro de Eco-Mitologia.

Ali no topo do monte, no meio das pedras, mesmo à beira da nascente, viviam três Senhoras. Dançavam sob a lua e as estrelas, ondulavam nas melodias do vento. Tinham crescido ali, as três irmãs, entrelaçadas. Conversavam com a água fresca que brotava do ventre da terra, escutavam os pássaros e os animais que nelas habitavam. Cortejavam os fungos que do seu corpo despontavam. Abraçavam-se debaixo do chão durante as tempestades de primavera. Amparavam-se no frio do inverno e a água da nascente embebia as suas raízes na canícula dos dias quentes.

Mãos velhas, agora feitas húmus, há muito que as tinham semeado e delas cuidaram. Juntas cresceram, abraçadas pelas raízes e entrelaçadas pelas copas, ali à beira da nascente. Muitas estações passaram e os seus troncos espessam, com sulcos fundos de histórias para contar.

Os três filhos do homem que as semeou herdaram as Faias Dançantes. Da névoa e cobiça, pois nunca as tinha visto dançar, o filho mais velho logo cortou uma das Senhoras, para usar a sua madeira. Os gritos surdos das suas irmãs tentaram evitar o pior, acertando-lhe com galhos e ramos. Mas o homem insistiu e o corpo da irmã tombou, ainda vivo, no chão de pedras. Com ajuda dos homens da aldeia, cortaram o seu torso e arrastaram os pedaços, perante a presença aflita das suas irmãs desgostosas. Juntas na sua dor, chamaram o vento que levantou uma tempestade. Os homens fugiram dizendo que aquele sítio estava amaldiçoado.

As pessoas deixaram de aparecer por ali. Alguns anos passaram e as duas Senhoras, apesar da dor e do luto pela perda da irmã, voltaram a dançar. Todo o seu corpo lenhoso e arbóreo vibrava e ressoava com os elementos, e elas bailavam ao ritmo da vida à sua volta. Mas os verões começaram a aquecer e numa dessas estações quentes e secas a nascente esgotou. A água evaporou e dos sussurros da água só ficou a memória. O fogo, voraz e abrasador, aproveitou a oportunidade e varreu a área. Surpreendentemente, dois dos irmãos apareceram e cuidaram de apagar as labaredas, e as duas Faias Dançantes, assustadas e cobertas de cinza, subsistiram. Mas, os dias tórridos e secos também. Uma das duas irmãs começou a secar, as suas folhas a amarelar e cair. Ficou rígida e já não conseguia dançar. Mirrou, murchou. Secou. De pé, mas sem vida. Eventualmente tombou e a última Senhora escutou o seu cair, cheira de tristeza e saudade no seu coração lenhoso.

Muitas estações passaram, diversas tempestades uivaram e a Senhora já não tinha a quem abraçar as raízes. Mas o seu tronco tinha crescido, enquanto a copa chegava mais alto e as raízes iam mais fundo. A sua sombra abrigava muitas tocas, nichos e ninhos. O seu corpo albergava e alimentava a vida. E ela voltou a dançar. Nas noites de lua cheia as crianças da aldeia viam-na, lá no topo do monte, a mover-se pelos sopros do vento. A dançar sob a lua e as estrelas.

Após alguns invernos frios e chuvosos, a água fresca voltou a derramar-se da nascente e pequenos brotos emergiram do chão pedregoso. Novas mãos deles cuidaram, e assim cresceram. Jovens Faias acompanhadas pela última Senhora que continuou a dançar, que ensinou aos pequenos brotos os ritmos e as histórias antigas deste lugar. Contou-lhe as histórias das suas irmãs, de como bailavam juntas, e das mãos humanas que tanto cuidam como destroem. No final dos seus dias, o seu corpo ficou chão, à sombra de um bosque de Faias, Castanheiros e Carvalhos, ali mesmo à beira da nascente.

Esta história faz parte de um ciclo de pequenos contos, que escrevi sobre perdas que nos afectam a todos. São histórias que demorei muito a escrever, seja pela pesquisa para a redigir, seja pela sua dureza. São contos desafiantes por nos questionarem visceralmente, muito para além da articulação verbal ou da compreensão estritamente racional. Mantemo-nos nesse lugar de não saber e sem esconder a sensação de vergonha ou culpa, aqui o coração pulsa e recorda-se do mamífero íntegro que nos habita, acolhendo com carinho as frágeis emoções, aquelas que nos fazem relacionar e pertencer.

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Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.