A medicina das daninhas na Ribeira

 

Todas as semanas procuro visitar a Ribeira, em pontos distintos do seu percurso e em alturas diferentes do dia.

Visitamo-nos mutuamente, eu que vou ao seu encontro e as águas que correm alimentando tudo à volta. As águas reconhecem-me e que devolvem-me pertença e presença.

Percorro as suas margens, escuto as vozes do fluxo em movimento pelas rochas, assim como as aves pequenas e grandes que ali vivem, tal como os insectos e as plantas. As árvores, arbustos e flores que espontaneamente crescem nas suas margens, mas invasoras que drenam e extraem a água em excesso, outras que não usurpam a teia, contribuindo simbioticamente com a sua presença. 

Este é um ecossistema intoxicado e frágil, muito pressionado pela presença humana, onde as margens são quase inacessíveis por toda a construção em cima do leito. Mas, enquanto tem água, a Ribeira continua a correr pelos esconsos das pedras, pelo caminho já rasgado, teimosamente fluindo e oferecendo Vida. Admiro a sua resiliência e força em nutrir toda a diversidade à sua volta, apesar de toda a negligência, lixo, usurpação e esquecimento da sua sabedoria e presença. Apesar de toda a sujidade, entulho, detritos despejados no seu corpo.

A Ribeira ensina-me todos os dias que a Vida se alimenta no silêncio cantado das pequenas coisas.

Hoje, ao estar, percebi/senti de outra forma a simbiose e reciprocidade entre o que ali cresce e a água que ali corre. Aquelas plantas, arbustos e árvores são simbióticos com aquela água, são os seus olhos do céu, do sol e das nuvens. São a sua dança ao vento, os seus ouvidos do chão pedregoso e seco. A água que alimenta as “ervas daninhas” abre-se assim em possibilidades e diversidade. Claro que, segundo uma vivência animista, não há “ervas-daninhas”, ou pragas, o nome que se dá às ervas que nascem espontaneamente e que não são directamente úteis para os humanos que vivam nas imediações, sendo catalogadas de “más”. Claro que em ecossistemas dessacralizados e extremamente frágeis há plantas que fazem dano, sendo normalmente trazidas e disseminadas por humanos, tornando-se ameaças à teia autóctone, vorazmente consumindo-a e silenciando a diversidade. Aqui recupero a relação do termo “daninho” como potência e resiliência da própria Vida.

Num ecossistema soberano, ou seja, capaz de se regenerar em ciclos maiores e menores, não há daninhas, mas medicinas.

O que as águas alimentam são plantas que trazem a medicina necessária ao lugar, são alinhamentos naturais que prestam valioso auxílio ao lugar e aos seus habitantes.

Afinal as plantas e as pedras são as nossas avós e sabem o que precisamos.

    As margens da Ribeira, quando as há, são terrenos pedregosos e abandonados, margens cheia de vida silvestre e espontânea. No pequeno baldio que percorri hoje, encontrei as seguintes medicinas, autênticos tesouros de abundância debaixo dos meus pés:

    Salgueira (Lythrum salicaria)

    Do grego lythrôn, “sangue misturado com pó”, usada para tratar as feridas e estancar o sangue. Também usada para o tratamento de diarreia crónica. É antibacteriana, usada em gargarejos e lavagens de olhos. Sendo ainda utilizada no alívio de alterações menstruais.

    Corriola (Convolvulus arvensis)

    A corriola é utilizada como purgante e laxante. É um hipotensor e estimulante da circulação coronária. Exerce um efeito antiespasmódico sobre os músculos. 

    Cardo-asnil (Carduus pycnocephalus)

    Diurético, excitante da secreção biliar, protege ou contribui para proteger o fígado e melífero. Usados contra a diabetes e as doenças do fígado e da vesícula (icterícia). 

    Almeirão ou Chicória (Cichorium intybus)

    Tem propriedades analgésicas e ação antioxidante, prevenindo o envelhecimento precoce e auxilia na desintoxicação do fígado. Na culinária é consumido cru em saladas. Usado em afecções do fígado e vesícula, falta de apetite, gastroenterite, verminose, dispepsia e diabetes.

    Cardo-de-ouro ou Cantarinha (Scolvmus hispanicus)

    Propriedades diuréticas em doentes com insuficiências renais. Também são conhecidas pelas suas propriedades anti-transpirantes.

    Tanchagem menor ou Olho-de-cabra (Plantago lagopus)

    Propriedades anti-bacteriana, antibiótica, calmante, oftálmica, febrífuga, expectorante, cicatrizante, anti-tússica e drenante.

    Mostarda Silvestre (Hirschfeldia incana)

    Propriedades soporíferas

    Malva-silvestre (Malva sylvestris)

    Auxilia no tratamento de tosse com catarro, dor de garganta ou aftas. Capacidade de acelerar a cicatrização de feridas, protege contra infecções, reduz a inflamação, retarda o envelhecimento, melhora a saúde respiratória, otimiza as funções digestivas, melhora o sono e trata dores de cabeça. As malvas têm propriedades anti-inflamatórias, laxantes, cicatrizantes, calmantes, digestivas e expetorantes. Também se emprega no tratamento de feridas, chagas e picadas de insetos. Além disso, a planta tem ação laxante, emoliente, anti-inflamatória, hidratante, expectorante e calmante.

    Amora-preta (Rubus ulmifolius)

    Os frutos (as amoras) são muito apreciados, servindo de base a xaropes adstringentes. As folhas podem ser usadas como loção para o rosto ou em gargarejos para as doenças da boca. 

    Freixo (Fraxinus angustifolia)

    As propriedades do freixo incluem a sua ação diurética, laxante, depurativa, antipirética, anti-inflamatória, analgésica cicatrizante e rejuvenescedora. Dioscórides (séc. I), escreve sobre as propriedades do sumo de freixo na cura de mordeduras de víbora. Antigamente a madeira era empregue em utensílios agrícolas. Madeira usada em carpintaria e construção. Lenha de qualidade. Fraxinus deriva do grego frassein, que significa separação – árvore frequentemente usada para fazer separação e delimitação de espaços.
    O freixo também é uma espécie popular na mitologia escandinava e germânica. A árvore cósmica para estes povos – Yggdasril – era um freixo: os ramos estendiam-se por toda a terra, o tronco ascendia ao paraíso e as raízes fundiam-se no coração da Terra. Os druidas, sacerdotes celtas, invocavam o freixo em tempos de seca e pediam chuva, mas não uma chuva qualquer, pois o freixo trazia chuva mansa.

    Quero notar que as medicinas aqui listadas estão a ser vistas segundo a interação com a perspectiva humana, no entanto, e apesar da minha ignorância, não pretendo violentar a sua dignidade e soberania, pois, a sua presença tem enlaçamentos subtis e potentes com todas as outras espécies presentes. Nesta simples lista nem sequer me apercebo da medicina que cada uma delas traz para as outras espécies, para o solo, ar ou água, ou mesmo para outras plantas e animais.

    Entrelaçamentos esses que desconheço, mas que me levam a questionar como num ecossistema ribeirinho tão fragilizado e debilitado, o que ali nasce, cresce e morre, o faz em profunda simbiose e medicina multi-espécies, em efémeras, débeis e potentes histórias e canções do espectro da Vida-Morte-Vida.

    Melodias que sustentam a Vida, mesmo no meio do chão pedregoso e seco. Desdobramentos fractais de diversidade e multiplicidade da Água.

    Referências

    🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência. 

    Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.