Abismo Ritual

A Última Guardiã do Ventre Rochoso

{conto escrito em 2022 e adaptado para o livro “O Santuário”}

Aqui, no espaço liminar entre a terra e as marés, a Sacerdotisa tatuada protege as transições da vida, cantando encantamentos que evocam o poder primordial das águas salgadas e do solo rochoso, enquanto as brasas fumegantes mantêm vivo o limiar selvagem. As antigas grutas que ela guarda foram manualmente esculpidas na parede do abismo pelos seus antepassados. Uma paisagem sagrada à beira do mundo, com ventos fortes, ondas ferozes, céus profundos e rochas em fragmentação. As arribas costeiras escarpadas são feitas de vulcões colapsados e da própria vida, pois ecoam ciclos profundos quando animais e plantas marinhas, lagunares e de recife prosperavam aqui. Agora o seu fogo primordial e as suas histórias, são a própria rocha. 

Este templo sagrado e vivo é um lugar de memória, desintegração e decadência, para que a Vida se mantenha em desdobramento. Os últimos rituais são tecidos pela Guardiã, para que os corpos sejam aceites de volta ao útero de terra, de frente para o sol nascente. Cerimónias recitadas ao longo dos tempos, que pertencem intimamente a uma paisagem ritual onde os vivos se fundem com os mortos, mantendo a promessa de renovação.

A Guardiã do Ventre Rochoso conhece a linguagem deste lugar, preservando a memória dos espíritos da água selvagem e salgada dos tempos primordiais. Ela guarda conchas, agulhas de espinha de peixe, carvão, presas de javali, ídolos de osso, uma adaga de cobre, uma faca de cristal de rocha, pedra âmbar, ouro e sal, no seu saco de pele de cabra. Ela ouve os pássaros e os peixes, dança com o vento e as ondas e canta com as rochas, tecendo relações, entrançando o tempo e o espaço.

A Sacerdotisa tatuada sabe que esta é a entrada para o submundo e que nenhum mortal está destinado a passar por estes penhascos que penetram nos santuários esculpidos nas rochas, uma vez que estas paredes ocasionalmente se desmoronam até às águas primordiais. O santuário vivo lembra a grande dissolução, quando cada onda salgada regressa, sem forma, ao oceano em movimento, quando o sacrifício da experiência individual alimenta o grande ciclo da Vida.

Numa noite sem lua, a velha Sacerdotisa, com a sua túnica com botões de osso, colar de presas de javali e anéis de ouro em forma de serpentes-espiral, acende a pira e recolhe as oferendas em pequenos vasos de terracota com as suas velhas mãos: alguns carvões e brasas, sal sagrado colhido durante a maré baixa nas lajes próximas, pelas suas qualidades mágicas murta e avenca fresca, algum ouro e sangue do seu dedo picado com a sua faca de cristal de pedra. Ela canta, ecoando as estrelas, as ondas rítmicas e a terra pulsante. Ela canta ferozmente em terna recordação e reciprocidade. Em simbiose, canta a partir das cinzas e a sua voz ressoa através do abismo, despertando os seres selvagens e antigos que abrem o limiar. Monstros das profundezas do mar salgado. Ao amanhecer, suavemente, os monstros levam o seu corpo frágil para o ventre-túmulo, colocando-a com cuidado entre os ossos antigos, na rocha-terra. Os ventos e as ondas rugem enquanto a terra recebe o seu corpo. 

Tudo é esquecido.

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Estas antigas cavernas funerárias comunitárias foram encontradas em 1944, na arriba do que hoje se chama São Pedro do Estoril, em Portugal, viradas para o Oceano Atlântico. Hoje existe uma praia, com cafés, escolas de surf e muita actividade turística na zona. As grutas artificiais já não existem, devido à erosão da escarpa. Eu vivo nesta (ainda) geografia sagrada, e esta fabulação foi tecida através do Mistério, Mito e Metáfora, permitindo uma recordação da nossa sabedoria integrada e contextual. O conto da “A Última Guardiã do Ventre Rochoso” foi tecido numa perspectiva Eco-Mitológica, um convite a uma peregrinação fractal e caleidoscópica, trabalhando da alegria à dor, no ciclo orgânico e completo entre Vida e Morte, resgatando e recriando um ecossistema diversificado de histórias, mitos e contos.

A mente moderna ocidental cortada, egocêntrica em superioridade moral e intelectual, entende Mistério, Mito e Metáforas como formas primitivas e infantis de interpretar a realidade, pois não são factuais, mensuráveis, nem objectivas. Afinal, as histórias são para as crianças, servindo apenas como fantasias vazias para escapar a uma realidade dolorosa. Apenas mais uma trágica limitação da narrativa moderna do transcendente, presa na legitimidade única do absolutismo antropocêntrico. No entanto, sem os ricos fios vivos de Metáforas, Mitos e Mistérios, facilmente nos encontramos a escalar as montanhas de vidro frias, espelhadas, escorregadias, devastadoramente afiadas e a cortantes, abrindo feridas emocionais cada vez mais profundas através das quais a força e a pertença se perdem. Onde perdemos a Vida, cortando o ciclo sagrado. As histórias são detentoras da complexidade original.

Será que nos vamos lembrar?

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Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.