Celebração dos 2 anos do lançamento do livro “Contos da Serpente e da Lua”

Ilustrações de Carolina Mandrágora

Prefácio de Élia Gonçalves

Edições Mahatma

A Menina Cabra – Belinda e Benilde

Em tempos antigos, num castelo de granito negro e revolto, vivia uma corte com bondosos Rei e Rainha. Eles cuidavam do seu reino, eram justos e, por serem benevolentes com os seus súbditos, eram muito populares e acarinhados. Cuidavam das famílias que por eles plantavam os cereais e as frutas, que tomavam conta dos animais e da terra. Distribuíam as colheitas e não ficava ninguém sem comida. Organizavam faustosos festins e banquetes, com jograis, dançarinos e bardos que animavam as noites mais escuras. As pedras do castelo, ainda vivas, vibravam com poesia e música. Mas apesar disto também nelas havia tristeza e choravam. Não conseguiam ter filhos e a Rainha muito lamentava. Na escuridão da noite uivava de dor. Numa noite de lua cheia, ao sentir o seu ventre vazio, lembrou-se de uma história que a sua avó lhe contava.

Levanta-se então de rompante e encontra no seu baú o Xaile Mágico do Chamamento. A sua avó sussurrara-lhe um dia que o xaile traria ajuda em alturas de aflição, mas que nunca, nunca, deveria ser usado sem pesar. O xaile cuidadosamente guardado na antiga arca de madeira, estava na família desde tempos imemoriais, passado de mãe para filha. Cada uma das mulheres da família o tocaram com carinho e atenção, o teceram e remendaram. Desde as de nome já esquecido até às gerações actuais. A sua origem perde-se na bruma dos tempos. Mas a avó contava, nas noites frias à lareira, que fora originalmente tecido por alguma antepassada que vivera na orla da floresta, uma mulher sábia que tecia a sabedoria das pedras e das memórias. O xaile do chamamento acordava os guardiões antigos do lugar, pois tocava as suas melodias. Nesse mesmo momento a rainha sai do castelo a correr pelos campos iluminados pela lua. Sabia exactamente o que tinha de fazer.

Correu pela floresta adentro, aos tropeções, mas com confiança. Ao chegar, sabia ter de passar o velho Xaile pela pedra e esperar. Ao largar o Xaile no topo da pedra, a Rainha, exausta, cai de joelhos no chão, ganhando de uma só vez, plena consciência de onde estava, completamente sozinha e descalça. Pelo medo chorou, pela raiva uivou, pela perda e ventre vazio lamentou. Perdeu a noção do tempo que esteve ali à espera. Adormeceu e quando acordou viu pelo canto do olho uma gigantesca serpente negra a sair debaixo da pedra. No tropel de se levantar para fugir dá de caras com uma velha muito velha, encurvada e encarquilhada que, afinal, parece que sempre ali esteve. A anciã da pedra diz-lhe: “para quebrar
o teu encanto tens de chorar para a fraga na próxima noite de lua cheia. O teu lamento deve ser visceral, não deixando nenhuma lágrima por chorar, libertando toda a dor ao ventre da terra e à água doce que por ele corre. Se assim o fizeres, na manhã seguinte encontrarás dois figos, um seco e outro bem maduro para comer. Só deves comer o figo lampo e sob nenhuma circunstância deves comer o figo seco”.
A anciã da pedra murmura avisos que a rainha já não ouve, pois, o seu coração ansioso já está na próxima lua cheia: “a partir do sexto ano deve cuidar-se das luas negras e ao décimo segundo ano tudo cessará”, adverte a anciã na sua voz antiga. A rainha acorda de manhã no chão da floresta perto da pedra enxailada, e ao abrir os olhos parece-lhe ver a cauda de uma cobra a aninhar-se debaixo do rochedo rugoso. Num pulo, pega no Xaile e corre de volta ao castelo. Chega horas depois, já o rei mandara homens à sua procura. Preocupado recebe-a de braços abertos e cuida dos seus pés cansados e ensanguentados.

Um mês depois, a Rainha faz como a anciã da Pedra lhe sussurrou. Grita toda a sua dor para o interior da fraga ao longo de toda a noite, secando as lágrimas do seu luto. Cansada e exausta, acaba por adormecer. Ao acordar com o sol nascente na pedra fria, encontra, tal como a anciã disse, dois figos. Um seco e outro maduro. Numa ânsia selvagem engole o figo seco de um trago. Algo dentro dela desce e puxa. Forte, vivo e potente. Não devia ter comido este figo, pensa desiludida consigo mesma. Mas ninguém viu. Então, senta-se com a dignidade de uma rainha e delicadamente come o doce figo maduro e doce que voluptuosamente ainda a aguardava na pedra.

De volta ao castelo, e após uma resplandecente e alegre gravidez, dez luas depois entra em trabalho de parto. Todos no castelo ficam numa grande azáfama para acompanhar a Rainha naquele momento sagrado. A parteira está presente no quarto no momento em que após três contrações a Rainha dá à luz uma pequena cabra. Uma cabritinha de pêlo molhado e ensanguentado, que mal se tem de pé. Logo a seguir vem uma menina, roliça e perfeita. A pedido do Rei a pequena cabra, sem nome, é deixada discretamente na orla da floresta pela parteira perplexa. Enquanto a menina, Belinda chamaram-lhe, cresce em berço de ouro no castelo, rodeada de colo, carinhos e atenção, mas também de poesia e música. Aprende a tecer, coser, remendar, cozinhar, escrever e cantar. Cresce feliz, mas sempre com saudades de alguma coisa, sem saber o quê.

A pequena cabra, deixada na orla da floresta ainda sem ter força para se por de pé, no dia seguinte já lá não está. “Deve ter sido levada por lobos”, pensa o Rei com alívio. Foi levada sim, mas por mãos rugosas e escamosas que a amparam nas primeiras horas. Mãos sábias e quentes que a nutriram. A pequena cabra ganhou o nome de Benilde, sussurrado por entre as pedras. Benilde, a cabritinha, cresce em curiosidade e liberdade, incorporando a sabedoria selvagem da floresta, subindo aos mais altos penhascos, bebendo água das fontes, comendo figos e amoras silvestres no verão e encontrando aconchego no inverno. Por seis anos deambula pelo bosque à procura não sabe de quê. Benilde conhece estes caminhos tão bem como os seus cascos, o seu pêlo vibra com as tempestades e os seus cornos contorcem-se a cada descoberta. Conhece todos os recantos, desde os topos mais elevados aos abismos mais fundos, saboreia todas as ervas e encontra companhia nos outros animais. Cresce ágil e forte, mas falta sempre algo. Procura, sempre procura, com uma eterna saudade do que não sabe.

No ano em que as irmãs fazem seis anos, na noite de solstício de verão, algo estranho acontece, pois, Benilde subitamente perde o pêlo lanoso e os chifres, e vê-se menina, enquanto Belinda ganha cascos e encontra-se cabra. A Cabra Belinda à solta no palácio, gera o caos na corte, sob o olhar ansioso e preocupado do pai e a confusão da mãe. Sobe para cima das mesas, come cortinas e descobre uma nova forma de estar no mundo. Benilde, agora menina, com novas mãos suaves e pele delicada, encontra na floresta a anciã que lhe diz que está quase a voltar para casa. Sem o seu pêlo, Benilde tem frio e sente-se perdida. Mas felizmente na manhã seguinte ambas retornam ao seu corpo antigo. Tudo no seu lugar uma vez mais. Benilde cabriola pela floresta e Belinda remenda o antigo xaile no castelo.

Mas, a partir desse dia, a todas as luas negras as irmãs transmutam o corpo, experimentando outros lugares de ser. Ao longo do tempo vão ficando resquícios, pés de cabra e pequenos chifres em Belinda ou orelhas humanas em Benilde. Ambas híbridas de menina e cabra, de castelo, penhasco e floresta. Durante o sono a metamorfose acontece, umas vezes suave outras vezes violenta e dolorosa. O corpo mexe, muda e transforma-se. A vontade altera-se. Belinda sonha cada vez mais nitidamente com a floresta, com a sua irmã gémea e, perto do seu décimo segundo aniversário, sabe o que tem de fazer. Sabe que tem de sair do castelo, partir para o desconhecido para poder, finalmente, voltar para a casa.

A rainha, chorosa, oferece-lhe o xaile como prenda de aniversário e sabe que tem de a deixar seguir o seu caminho. O Rei e a Rainha, de coração nas mãos deixam-na ir, não sabendo se a voltam a ver, mas, quem ama liberta. A menina dos seus olhos abre caminho pela floresta selvagem, com o xaile aos ombros.

Estranhamente Belinda conhece aqueles caminhos sinuosos e escuros. Poderia caminhar de olhos fechados. Segue devagar, saboreando este lugar tão estranhamente familiar.
Ao chegar à pedra do centro da floresta o seu coração arranca. Bate forte. Do outro lado está uma cabra, de olhar sábio e vivo. Conhecem-se instantaneamente e correm uma para a outra numa felicidade nunca antes sentida.

Encontram-se agora aos doze anos, numa fraga a meio caminho entre o castelo e a floresta, a mesma onde a mãe chorou, onde as suas lágrimas de lamento salgado se entregaram à sabedoria selvagem da floresta. Enquanto as irmãs se abraçam, a serpente sai das pedras e enrola as meninas-cabras, apertando-as e juntando-as. Fundem-se. Transmutam-se. Não mais sozinhas, sempre juntas. Não precisam de procurar mais. As suas psiques transmutam-se num só corpo, pois Alma sempre fora só e apenas uma. A menina que conhece os profundos mistérios da floresta e fala a língua dos homens. A cabra que conhece o castelo, todas as suas pedras e nunca se perde na floresta.

A Menina-Cabra alojou-se na orla do bosque, entre mundos, entre os caminhos sinuosos e selvagens, e as estradas direitas. Fez-se mulher, mulher-ponte, guardiã-medial das rochas e dos recantos. Escolheu manter os pés de cabra para se lembrar do caminho e do serviço. Daqui do liminar serviu, durante muitos anos, montanhas, homens e bestas, pois conhecia a linguagem antiga da Terra.

Ao morrer tornou-se pedra. O xaile, esse, continuou a sua história noutras hábeis mãos.

Depois da história, por favor, dedique algum tempo a sentir como se relaciona consigo e o que se desenrola e ressoa com o seu contexto único. Respiremos!

O que Encanta o Conto

 

O que se segue não é uma interpretação simbólica do conto, exilando-o numa única narrativa. Há um diálogo simbiótico único com as suas camadas vivas que é seu para sentir, pressentir e viajar. As palavras que se seguem são míticas, históricas e colocam informação transcontextual que ressoa com o reino pulsante do conto.

Este conto foi sonhado inteiro, tendo-me sido oferecido e eu apenas o escrevi. Ao emergir de forma tão espontânea, de seguida procurei referências e ecos de onde poderia ter vindo.

Figos e Outros Contos

E muitas coisas surgiram. A primeira é a referência à história que sempre me fascinou, a lenda da Dama Pé de Cabra. Neste conto popular português o nobre Diogo Lopes andava a caçar quando encontra uma dama tão bela que imediatamente se apaixona por ela. Estranhou o facto de ela ter pés de cabra, mas estava tão encantado que quis casar na mesma com ela. Ela aceitou, desde que ele prometesse nunca mais se benzer, o que reporta a uma conexão a religiões arcaicas pagãs. Ela acaba por fugir anos depois com receio de retaliações por ser vista como um demónio pela população. Leva a filha de ambos, enquanto o filho se mantém com o pai. Anos mais tarde o filho, já cavaleiro, apela à mãe que o ajude a salvar o pai aprisionado pelos mouros, que ela acede com a ajuda de um corcel branco. Lembrando que simbolicamente os cavalos são psicopompos míticos, que sabem o caminho de transição entre mundos, levando quem os monta numa peregrinação de resgate de sabedoria e metamorfose profunda. Este conto da Menina Cabra, apercebi-me depois, é a história da origem da Dama dos pés de Cabra.

Há também o conto popular português chamado Cordeirinho Branco, em que uma rainha tem um cordeirinho em vez de um filho, e este deseja casar-se. Era um príncipe amaldiçoado que tinha de se casar três vezes e despir sete peles, mas a sua noiva não consegue retirar o feitiço. Ele permanece amaldiçoado durante os sete anos seguintes, e a noiva tem de o procurar nos palácios da Lua, do Vento e do Sol. Por fim, ela reconhece-o, agora sob a forma de um pássaro, e resgata-o do encantamento.

A segunda referência é o conto do folclore escandinavo, The Lindworm, onde uma ténia “meio-homem, meia serpente”, nasce como um dos gémeos de uma rainha, que, num esforço para ultrapassar a sua situação sem filhos, segue o conselho de uma velha anciã, que lhe diz para comer duas cebolas (ou flores consoante a versão). A rainha não descascou a primeira cebola, fazendo com que o primeiro gémeo fosse uma gigantesca lombriga, ténia ou serpente.

Recordemos que as cebolas, as flores e os figos têm afinidades profundas com as deusas negras ctónicas. A antiga Cibele tem ligações com as cebolas e o figo é uma flor invertida, ligada ao leite materno e à vulva, bem como às cerimónias rituais de purga da deusa romana Fauna. Deméter também estava ligada à figueira. No antigo Kemet, a figueira era um portal para o submundo da deusa ou para o seu ventre sagrado, assinalando locais com água subterrânea. A figueira está ligada à sabedoria visionária, sendo associada ao fruto do conhecimento pelos hebreus e cananeus (fenícios), através de antigos rituais xamânicos e extáticos. A poderosa figueira é um antigo axis-mundi. Um ditado popular português diz que “A figueira nasce sempre onde alguém cai”, o tropeço faz o chão estontear e a figueira emerge das profundezas. O poder ancestral da flor invertida. Ninho de vespas. Doce leite da mãe terra. Revolução dos escravos. Celebração. Abraço da mãe primordial. Matriz inversa. Fazer as coisas de forma diferente. Nutrir o tombo. Comunicação com raízes profundas e ramos.

Há também a versão italiana da menina que entra no transe adormecido, A Bela Adormecida, onde ela é concebida, por magia, pela ingestão real de uma pétala da rosa, ecoando de novo a imagem arcaica da fertilização herbal e mágica. Numa versão menos conhecida da Branca de Neve, onde são afinal duas irmãs, a Branca de Neve e a Vermelho Rosa. Ambas são a mesma personna ou mais exactamente são metades dicotómicas e recíprocas da mesma coisa, opostos complementares de inverno e verão, branco e frio, e vermelho e quente, numa versão muito antiga da codificação das estações solares.

O Duplo ou Gémeo Selvagem

Estes dois contos, Branca de Neve e Vermelho Rosa, e do Lindworm, levam-nos à dimensão de reencontro com o gémeo selvagem, um dos padrões fundamentais do conto da Menina Cabra. A integração com o duplo, uma parte imaterial ou zoomórfica do próprio eu, que em certas circunstâncias pode separar-se do corpo e viver a sua própria vida. Não corresponde à Alma, mas a outra essência, como uma imagem reflectida num espelho. Este conceito ancestral é difundido ao longo da antiguidade xamânica e pagã. Este é um tema tão antigo e poderoso que acerca do nascimento de gémeos a igreja pensava que apenas um poderia ter Alma, pois o outro seria uma criança demoníaca.

Há um arcaico e complexo de conceitos e ideias reflectidas na crença xamânica da “Alma dos ossos”, uma parte sagrada do ser humano que reside nos ossos, que possibilita a relação íntima entre o indivíduo e o seu duplo, o seu oposto complementar do espelho espiritual. Em muitas culturas xamânicas pensa-se que os ossos contêm a força vital do ser vivo e, o duplo, pode ser resgatado se os ossos permanecerem intactos. Este duplo, como os xamãs ou os seus familiares animais, pode viajar para longe, permitindo ter conhecimento e participar em actos que ocorrem mesmo a grandes distâncias, de espaço e tempo. Para o contactar, o xamã entra num transe extático, como se estivesse a sonhar.
O duplo traz a imagem da integração entre o domesticado e o selvagem, resgatando do exílio esta relação essencial e primordial. O objectivo é alguma forma de reintegração, relação e diálogo.

Segundo legados da literatura medieval europeia, uma pessoa pode sonhar profeticamente com o seu duplo, dado que, no estado onírico pode aceder à sua forma animal.
A metamorfose de humano para animal materializa-se em sonhos e visões, bem como na realidade, segundo as vivências xamânicas. Existe ainda a dimensão das fadas e das bruxas que também podem ser consideradas duplos, pois vivem numa dimensão paralela, com pleno e muitas vezes profético conhecimento da sua contraparte humana. Na secção das Mouras Encantadas escrevo mais em pormenor sobre outros ecos de duplos, tais como o Daemon.

A Cabra

Depois temos a Cabra, como animal pleno de simbolismo e sabedoria xamânica e herbal. O seu conhecido gosto pelo êxtase induzido por plantas ou cogumelos sagrados, faz parte do seu complexo metafórico, sendo frequentemente implicada na descoberta de plantas psicoactivas e na subsequente revelação devido ao seu hábito de pastar em tudo.
A cabra foi dos primeiros animais a serem domesticados, pelo que a sua presença e ressonância com as comunidades humanas será bastante anterior, numa relação muito antiga. A sua presença inclui o calor do seu corpo, a abundância do leite e os seus derivados, ou mesmo a carne e pele. Muitas culturas actuais estão familiarizadas com as cabras, sejam domesticadas ou selvagens, sendo uma figura muito presente nas mitologias e no folclore. Na Europa temos os pans, faunos ou sátiros, todos híbridos de cabra e homem.
As deusas Ataegina, Artémis e Diana são todas representadas com relação a cabras-selvagens. Os caprinos estão sintonizados com as energias telúricas, capazes de se mover estrategicamente através de terrenos difíceis e ir onde outros animais não podem, sobrevivendo em ambientes adversos.

O Xaile

Por fim temos a referência ao Xaile, transversal nos Contos da Serpente e da Lua. Apesar da história oficial colocar o xaile em território português no século XIX, as suas formas e presenças locais são muito mais antigas, pois no campo as mulheres sempre usaram agasalhos nas costas, seja uma saia dobrada, uma capa, capucha ou mantéu.

Esta peça ritual representa o poder da oralidade integrada no fio vivo, tecido e remendado pelo coração. Fibras urdidas em reverência e sopradas de vida, entrelaçadas entre os fios e o próprio corpo, mãos e voz. O Xaile passa o valioso legado dos poderes e mistérios femininos de geração em geração, ecos de vidas inteiras em todas as suas cambiantes. Serve para proteger e acarinhar, pois, cobre, envolve ou esconde e, tradicionalmente, é a peça que passava de mãe para filha, visto não haver muito mais para herdar.

O seu uso pode ser diário ou mágico e ritual, no corpo, na casa ou no lugar. Tem ligações simbólicas aos mantos, véus e capas, podendo ser usado em reverência, levantando camadas de percepção. O seu uso é desde o início da vida, enrolando e aquecendo o recém-nascido, pagando à parteira, até ao envolver do defunto ou da dor do luto, na preparação para o enterro, demonstrando poder ou escondendo pobreza.

O Xaile aparece neste conto como o legado feminino da Rainha, o antigo Xaile do Chamamento, que nunca deve ser usado irresponsavelmente. Aqui o Xaile é um talismã, um amuleto encantado de diálogo mais que humano, uma trama de conexão que resgata a sensibilidade e presença inteira. Um talismã que possui magia, estando profundamente ligado a rituais, desenlaces e remates, urdido por antigas mãos guardiãs, as que cuidam e nutrem, lembrando que não recebemos apenas trauma intergeracional, mas também muito amor, colo e presença. O padrão tecido neste Xaile é remendado e re-criado por ritmos, pulsos e melodias vivas. Um canto primal de incorporação da terra e do cosmos, sendo e tecendo a vida. A sua presença é sagrada.

A teia ou trama do Xaile nesta(s) história(s) é a de abrir portas ao mistério gerador.

🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência. 

Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.