O (tanto) que deixámos de escutar

“Wolkstein refere (…) enquanto o seu ouvido não se abrir para o Grande Abaixo, a sua compreensão é necessariamente limitada. Em sumério, a palavra para ouvido e sabedoria é a mesma. Diz-se de Enki, o Deus da Sabedoria e o Rei das Águas Profundas, que vive diretamente acima do submundo, que os seus ouvidos estão ‘bem abertos’ e que ‘ele sabe todas as coisas.'”

Dia 8 de Dezembro é o dia da concepção (Conceição) e a minha avó materna faria anos. Sempre a conheci cega, uma mulher intensa e zangada com o mundo. Neste dia celebro-a, pois apesar de não ver com os olhos, via detalhadamente de muitas outras formas. Neste dia da concepção abro a intenção a que nasçam outras formas de ver e sentir o mundo.

Ao escrever o livro “O Santuário – Ensaios sobre Eco-Mitologia,” optei por organizar os capítulos por três dos nossos sentidos, as sensações que perdemos ao longo da domesticação moderna. Seguindo o fio das narrativas que nos foram deixando cegos, surdos e mudos. Estes termos são usados aqui como metáforas da profunda alienação e dissociação sensorial e relacional da fragmentada cultura moderna o esquecimento de como relacionar de outra forma. Por outro lado, não se referem a “defeitos”, muito menos a nomeação de “falhas” ou incapacidades físicas das diversas formas de compreender e ser o mundo; nem postulam que os indivíduos que compreendem e se relacionam com o mundo de formas diferentes são de alguma forma inferiores. Falamos de surdez cognitiva, a limitada pelas crenças de como o mundo funciona.

Para tal, temos de nos abrir à diversidade para além dos confins e limitações da linguagem moderna, verbal, escrita, abrindo a outras camadas de relação porosa.

Pelo caminho vou colecionando contos, relatos e histórias -tanto as que recordam como as que alienam.

Recentemente, cruzaram-se comigo dois pequenos relatos de como a surdez cognitiva nos exila num mundo asséptico e inerte.

O Canto das Estrelas

A primeira é de um antropólogo holandês, e do seu “estudo” do povo San, no deserto do Kalahari em África. Outros aprendizes ocidentais-modernos desta cultura africana (auto-proclamados investigadores) já tinham dito coisas como: “(…) entrar no mundo dos San é como entrar na própria paisagem; eles são a paisagem que leem e interpretam continuamente; eu como ocidental sou completamente iletrado neste mundo.”

Ora, na década de sessenta do século vinte, o tal antropólogo holandês passou algum tempo acampado com os San, e à noite, a comunidade, contava e cantava histórias e canções que escutavam das estrelas. O holandês achou que eram metáforas, símbolos, mas nunca assumiu que as estrelas cantassem realmente. Quando a tribo percebeu que ele não escutava de todo as estrelas, ficaram de luto profundo por ele. Pela sua surdez e alienação, por não conseguir escutar a riqueza do céu. Fizeram-lhe um ritual de luto e dor pela perda da sua capacidade de ouvir as estrelas.

A Melodia da Aurora Boreal

A segunda foi transmitida pelo Dr. Predrag Slijepcevic, no seu curso e livro “Biocivilizations,” sobre os Sami, a tribo ainda residente no norte da Europa. Os Sami sempre contaram, nas suas histórias e canções, que as Auroras Boreais emitem melodias e sons audíveis. Que as escutam.

Os cientistas modernos sempre o negaram, atribuindo tal “crença” à inferioridade cognitiva e primitiva dos Sami. Afinal são apenas uma tribo da estepe gelada, são só pastores de renas. Segundo a ciência moderna, as histórias sussurradas pelas Auroras Boreais, mais nada são que superstição e crendice, porque é impossível, segundo as suas medidas e aparelhos, que gerem som. Até que recentemente um cientista provou que, de facto, este evento cósmico, as luzes coloridas no céu, produto da interação entre os ventos solares e elementos químicos, gera som! Apesar de inaudível para os ouvidos modernos, é autêntico. Mas todos se esqueceram de creditar a sabedoria sensorial milenar dos Sami, que sempre escutaram as melodias das auroras boreais.

🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência. 

Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.