Os Deuses da Modernidade

{ou dos Deuses esventrados em desdobramento vivo}

“Utilizamos o termo modernidade-colonialidade para assinalar de a modernidade não poder existir sem expropriação, extração, exploração, desapropriação, destituição, genocídios e ecocídios.”

– Gesturing Towards Decolonial Futures (GTDF) é um coletivo de investigadores, artistas, educadores, activistas e detentores de conhecimentos indígenas do Norte e do Sul Global.

“Todas as palavras e conceitos tecidos no meu trabalho nascem através da minha Vida, da naturalmente tendenciosa e sempre limitada percepção das coisas, não assumindo que carreguem qualquer verdade absoluta. Escrevo a partir de um contexto de baixa intensidade no norte global, em consciência e responsabilização pelo ecocídio e genocídio da modernidade.”

– Sofia Batalha

Uma Viagem Desconfortável

{porque voltar é muito mais difícil que ir}

Quem comigo partilha caminho já me ouviu muitas vezes dizer (talvez até demais) que “a Eco-Mitologia ou a Ecopsicologia não são processos românticos, para nos fazer sentir individualmente bem. Nem sequer são sobre nós! São caminhos de devoção comunitária, de luto e de dor, trilhos crus de entrega de volta à vida.” Fica ainda mais desconcertante quando refiro que não tem nada a ver com produção, evolução ou melhoramento pessoal. É perturbador e abstracto para a psique eurocentrada assumir que são percursos que rasgam o que sempre fazemos: minerar e extrair exaustivamente significados ou conclusões para conforto intelectual e assim manter as paisagens internas organizadas e seguras (consequentemente dissociando das paisagens externas).

Na verdade, caminhamos por territórios em profunda gestação e mudança, onde, arriscadamente, nos entregamos em humilde encantamento e curiosidade. Mas o convite desta viagem visceral não é ir dentro, isolando-nos e dissociando, pois não é sobre nós – o que incomoda bastante, deixando-nos perdidos no processo, “Então, se não vou dentro, vou para onde?” “Mas, se não é sobre mim, o que ganho com isto? Para que serve?”

O convite da Eco-Mitologia e Ecopsicologia não é sobre as nossas limitadas narrativas e métricas individuais, mas sobre relações e a capacidade cognitiva de ancorar a complexidade e o paradoxo, assim como a sintonização ao tempo profundo. É uma viagem de regresso ao mamífero que sempre fomos, um voltar às paisagens em mutação que ancoram a Vida.

Parece um convite desconfortável, difícil e talvez até embaraçoso, pois contrasta-nos com outras formas de ser humano que nunca fomos habituados a assumir, valorizar e muito menos a celebrar. Abrem-se profundas dúvidas e questões que tentam controlar, medir e linearizar o processo. A mente racional sente-se confusa, ao considerar a proposta incompreensível, vaga e demasiado imprecisa. Muitas pessoas dizem: “A minha mente não entende o que dizes, mas o corpo está aconchegado.” Esta fronteira aparentemente rígida só fala da nossa profunda iliteracia e dissociação cultural.

Esta viagem ecossistémica clama a relação profunda, aquela que nos afecta, a que faz o coração pulsar e as vísceras revolverem-se. Reivindicamos o labor de atravessar a sombra e o encantamento da saudade em compromisso e intimidade com o território e o mais-que-humano. Até que ponto conhecemos realmente o Lugar – os seus ciclos e ritmos, as mudanças sazonais, que relações temos com seres mais-que-humanos que o moldam? A intimidade é uma proximidade de parentesco visceral, gestada pelo tempo, atenção, humildade, compromisso, paciência e lentidão. A intimidade é um verbo, uma prática, um movimento em relação, possivelmente sem resposta ou eco imediatos. Forjar esta relação íntima desafia e altera quaisquer ideações ou crenças de que os seres humanos têm, por direito, a supremacia sobre todas as outras formas de vida. Alimentamos a compreensão incorporada que não somos melhores nem piores do que os outros seres. 

Este não um lugar cognitivamente passivo, mas biologicamente emaranhado, pelo ar que respiramos e as formas como nos movemos no chão e nas águas. Aqui não somos espectadores nem consumidores dissociados, mas testemunhas participativas e visceralmente envolvidas em ecologias vivas de parentescos animistas e mais-que-humanos. A exaustão e o encantamento são nossos companheiros de viagem. Assim como o luto, por toda a arrogância omnícida antropocêntrica, e o amor, porque realmente nos importamos. Porque sempre fomos guardiões da Vida.

O Voltar à Mitologia Crua

{um percurso intergeracional para sanar as feridas da espiritualidade transcendente}

“A resposta normal às atrocidades é bani-las da consciência, mas as atrocidades recusam-se a ser enterradas. Tão poderoso como o desejo de negar as atrocidades é a convicção de que a negação não funciona. A sabedoria popular está cheia de fantasmas que se recusam a descansar nos seus túmulos até que as suas histórias sejam contadas. O assassínio será revelado. Recordar e dizer a verdade sobre acontecimentos terríveis são pré-requisitos tanto para a restauração da ordem social como para a cura das vítimas individuais.”

– Judith Lewis Herman (1992), Trauma and Recovery: The Aftermath of Violence from Domestic Abuse to Political Terror

Quando escutamos a palavra Mitologia somos facilmente levados para o passado, numa procura de histórias fantásticas, hoje em dia, consideradas mentira ou simplesmente ignorantes.

Na realidade, a Mitologia viva e crua do presente traz ecos do passado, mas acorda e transforma os deuses e monstros antigos nos lugares esventrados e envenenados do agora. As formas ancestrais e míticas das entidades primevas guardam o espaço negativo para nos ligarmos ao que tem sido excluído do ciclo da vida. São os Deuses do caos e das sombras, entidades dos limiares que vão acordando do seu sono profundo. Assumimos que os tempos são diferentes, pois os lugares são agora profundamente desafiados e asfixiados, do cimento aos químicos, das violentas alterações dos cursos de água, passando pelas monoculturas e a mineração.

Se os Deuses do Lugar são expressões míticas e arquetípicas das forças ecológicas da paisagem, dos seus múltiplos sistemas, topografia, biologia, ciclos e inter-subjectividades, quando os lugares são profundamente alterados, também os deuses são desfigurados.

Ao longo da evolução da civilização temos transformado ecologias vibrantes e diversas em monoculturas industrializadas, domesticadas e envenenadas. Aprisionando e amordaçando a mitologia ecológica – deuses Frankenstein, filhos de narrativas tóxicas, resultado das transformações em grande escala induzidas pelas culturas coloniais e industriais.

Muitas Eco-mitologias antigas, para além de carregarem instruções precisas em forma de metáforas sobre a melhor forma de viver em determinado bioma, são também registos orais milenares de testemunhos de cataclismos que mudaram drasticamente a paisagem, como a personificação do vulcão na deusa Pele no Havai. Muitas catástrofes ecológicas ficaram gravadas na funda memória intergeracional, sendo ciclicamente celebradas em narrativas míticas. Estes mitos ajudam também a construir a identidade de cada cultura em pertença com o lugar que habita. Pois conhecer o lugar é estabelecer a cultura. 

Deuses Frankenstein (1), desfigurados pela modernidade e entrelaçados com as imaturas ideações de reencontrar ou resgatar de um passado longínquo e entidades “puras”. O profundo esventramento da teia da Vida e dos lugares que a sustentam de hoje, fala-nos de recomposições híbridas destas potentes entidades ecossistémicas. Incluindo violentas cicatrizes e feridas abertas. Atualmente reencontrar os deuses do lugar é tocar nestes corpos deformados pela modernidade. E ainda assim, nos interstícios e paradoxos, a potência da Vida pulsa a cada momento.

A Psique de Plástico visa replicar, de forma cristalizada e dogmática, versões puras e antigas de fragmentos mitológicos clássicos, listando Deuses e Deusas locais como se estivessem mortos ou ausentes. Mas a investigação-oração, vivencial e transdisciplinar, da Eco-Mitologia ou da Ecopsicologia não serve para listar Deuses e entidades antigos, nas suas versões longínquas. A Eco-Mitologia Crua está viva e assume o seu lugar relacional e sensorial, o seu tempo e metamorfose primal. Abrem-se assim diversos caminhos sensoriais de remembramento, que cosem fragmentos de entidades primordiais em novas formas e diferentes nomes.

Os Deuses da Modernidade, como forças ecossistémicas que moldam cada lugar e sustêm a vida a cada momento, estão contaminados e esventrados. As suas chagas, traumas e lesões, alimentam ciclos recursivos de mágoa e dor, tristeza e sofrimento, angústia e agonia.

A natureza crua do próprio ciclo da Vida sempre se decompôs e regenerou, mas agora este processo inclui as consequências reais do ecocídio generalizado.

Ao rasgar as peles da modernidade, podemos escutar estes uivos profundos dos lugares, gritos que ecoam a violência e negligência perpetrada, em que todos estamos implicados. Parece cruel, mas é por amor que escutamos, porque realmente nos importamos.

Recordemos que somos guardiões.

Os deuses antigos clamam mudança de pele dos lugares, conjuram honrar as cicatrizes, compostando os cortes e hematomas de volta ao ciclo da Vida. Em relação profunda, gestamos monstros num espaço e tempo metamórfico, cuidando das ferozes orações e oferendas aos santuários selvagens.*

*um santuário selvagem pode ser um dente de leão de irrompe da fissura do passeio.

 

(1) Frankenstein; ou, o Prometheus Moderno, é um romance de 1818 escrito pela autora inglesa Mary Shelley. Frankenstein conta a história de Victor Frankenstein, um jovem cientista que cria uma criatura sapiente numa experiência científica pouco ortodoxa.

🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência. 

Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.