
TEMPO DE LEITURA – 4 MINUTOS
Entre o Linho e a Constelação
{As Sete Irmãs como Tecelãs do Tempo}
Nas tradições que cruzam o céu e o corpo-lugar, as Plêiades — sete irmãs estelares — não são apenas uma constelação, mas agentes do tempo sagrado. Onde quer que sejam observadas no mundo, anunciam mudanças de estação: o início das chuvas, da sementeira, das colheitas. No Portugal antigo, onde o linho era mais do que fibra — era ritual, economia e mito enraizado — o surgimento e desaparecimento sazonal das Plêiades pode ser lido como um sussurro astronómico para semear, regar, colher e transformar.
A aparição desta constelação no céu ao amanhecer em meados de maio, pouco antes do sol nascer, coincide com a colheita do linho galego. Já o linho mourisco, semeado no fim de outono e colhido em maio, ecoa o ciclo inverso: tecido sob o véu da invisibilidade, quando as Plêiades se escondem do céu visível — recordando a sabedoria do subterrâneo, da fibra silenciosa e das águas escuras onde o linho repousa antes de nascer. Tal como as irmãs que desaparecem no mito, o linho mergulha na terra, na água, na cinza, passando por morte simbólica antes de tornar-se fio.
Cada fase do linho — do arranque ao repouso no ribeiro, da maceração ao fiar — ecoa o ciclo das Irmãs: sair, dissolver, reemergir. Quando o linho é deitado à água e coberto com pedras para não fugir, não estamos apenas a preservar a fibra — invocamos o gesto das irmãs-pássaro cujos mantos foram enterrados, roubados ou escondidos, e que precisam de ser recuperados para que a liberdade (e a estação seguinte) retornem.
O manto da mulher-pássaro — nos contos das Sete Irmãs e das noivas-animais — é urdido de linho astral. Ele guarda o saber do voo e da estação certa. Quando o manto é roubado, é o tempo que se desregula, perdendo a trama e seguindo uma só linha. Quando o manto é reencontrado, o corpo volta a alinhar-se com as águas, as sementes, os ciclos menstruais e migratórios. As mulheres que fiavam o linho não fiavam apenas tecido — fiavam tempo. As constelações desciam aos seus dedos.
Recontar as histórias das mulheres-pássaro à luz do ciclo do linho e das Plêiades é um gesto de restituição: devolve-se o corpo ao território, o mito à fecundidade do chão e dos ciclos, o céu ao movimento. Em cada sementeira, uma história. Em cada água que corre sobre a fibra, um murmúrio estrelar. Em cada meada ao sol, um pedaço de céu tecido no chão.
A Costura das Sete Saias – Mito, Fibra e Estação
O ciclo tradicional do linho em Portugal, descrito por Leite de Vasconcelos com precisão etnográfica, revela uma coreografia ancestral em 23 passos — um verdadeiro rito de passagem da planta à trama. E se os lermos à luz do ciclo das Plêiades? Podemos fabular e agrupar essas etapas em sete gestos-sabedoria, como se cada uma das sete irmãs trouxesse consigo um segredo da transformação:
Senhora do Luto e da Travessia
🌑 A Sementeira
A irmã que guia os mortos e os sonhos. Semear é colocar uma promessa na terra — um gesto de fé perante o invisível. Como as Plêiades que desaparecem do céu no outono e regressam com a primavera, também o linho precisa desaparecer sob a terra para renascer. O luto pela ausência das estrelas (e das irmãs) é também um gesto de gestação.
Semeia em silêncio, invoca quem já partiu e o que queres deixar partir.
~
Senhora da Terra e da Fibra
🌱 A Imersão, Apodrecer e Batida
A que ensina com raízes. O linho é alagado, batido, amassado. A fibra só nasce da decomposição. Esta irmã ensina-nos que a fertilidade vem da lama e da podridão — como os mitos esquecidos sob o cimento. A terra é húmida e viva, e a dor não é erro, mas transição.
Toca a terra húmida, ouve a água escura, agradece o apodrecimento.
~
Senhora dos Pássaros e dos Ramos
🕊️ Fiação e Fiandeiras
Como o voo dos pássaros que guiam a estação, esta irmã guia a mão das mulheres fiadeiras. As histórias dos mantos roubados ecoam aqui — as penas transformadas em fios. As fiadeiras não apenas criam tecido, mas reconstroem o céu com os dedos.
Fia um pensamento ou memória ancestral, enrola em fuso simbólico.
~
Senhora das Águas Doces e Correntes
💧 Lavagem, Cora e Clareamento
A água leva e revela. As meadas são banhadas, espremidas, coradas ao sol. Esta Senhora lembra-nos que a memória se limpa com movimento, e que toda a fibra precisa ser atravessada por correnteza e tempo.
Lava um tecido ou objeto simbólico em água corrente, oferece uma canção de cora.
~
Senhora do Mar e do Rosário
🌊 Dobagem, Rosário, Trançado
Os fios já fiados são alinhados como contas de um rosário. Esta Senhora ensina o ritmo e a cadência, a oração sem palavras, a devoção aos gestos repetidos. O oceano está nos novelos e nas rezas.
Toca cada elo como se tocasse o tempo — nomeia cada estação, cada dor, cada bênção.
~
Senhora da Chuva e da Memória Celeste
🌧️ Cozedura, Barrela, Fermento
A alquimia da fervura e da cinza — a memória de todas as águas. Esta Senhora transforma o fio em história que pode ser contada. Ela trabalha com vapor, com nuvem, com lágrima.
Escuta a chuva ou vapor, recolhe uma palavra que se quer curar.
~
Senhora dos Desejos e do Tear
🪡 Tecedeira e a Última Etapa
A mais jovem das irmãs, mas aquela que carrega todos os fios. Tecendo o que foi fiado, ensaboado, rosariado. Ela tece o céu à terra. Como as capelas nas colinas das Sete Senhoras, ela é a casa final e o novo começo.
Oferece um desejo costurado — em linha, palavra ou gesto — às Sete Estrelas.
As Sete Senhoras portuguesas — montes, grutas, fontes — são os pontos de ancoragem desta constelação terrestre. Desde o Monte da Senhora do Almurtão à Senhora da Lapa, Senhora das Neves, Senhora da Luz, cada invocação popular cria raízes no território e reflete, à sua maneira, a presença de um ritmo que vem do céu. As romarias, os lenços oferecidos, os milagres narrados — todos funcionam como práticas de corpo-lugar do mesmo mito. Podemos especular que cada Senhora guarda uma das etapas do ciclo do linho, e que cada monte é um tear celeste pousado sobre a terra.

Referências
✦ Mitologia & Contos Eco-Míticos
- Contos das Mulheres-Pássaro / Pássaro-Noiva: coletados no documento “Contos – As Sete Irmãs” (docx), elaborado por mim para a (des)formação de Eco-Mitologia, incluindo versões da mulher cisne, da mulher corvo e dos mitos da mulher que perde ou recupera o manto de penas. Essas histórias informam a análise simbólica do manto como marcador de migração e soberania cíclica.
- Histórias de noiva-animal (ex: cisnes, corujas, grous): baseadas em mitologias de diversas tradições — europeias, siberianas, ameríndias e asiáticas — abordadas no documento “Deusas Pássaro e a eco-mitologia das migrações”, um conjunto de textos meus e de referências sobre este tema.
- Mitologia das Plêiades: a sua ligação com o calendário agrícola, com o ciclo das águas e com o feminino cósmico, mencionada nos meus textos e enraizada em cosmologias grega, maia, celta e yorubá.
✦ Ecologia, Calendários e Feminino Sazonal
- Relações entre migrações de aves e ciclos agrícolas: observações contextuais das minhas investigações, nomeadamente sobre os fluxos de aves coincidindo com períodos de plantio, colheita ou preparação ritual (como a chegada das andorinhas à Península Ibérica).
- Calendários lunares e aquáticos: presentes em várias culturas agrárias matriarcais e cosmologias baseadas na observação do céu e das águas — abordadas nos contos das Sete Irmãs como “Mulheres do Tempo”, “Senhoras das Estações” e guardiãs dos ritmos cíclicos.
✦ Bibliografia
Andrews, Munya. The Seven Sisters of the Pleiades: Stories from Around the World. Spinifex Press, 2004.
“O Calendário das Plêiades.” Documento de notas adaptado de Munya Andrews.
Saber Fazer. “Investigação: O Linho.” https://www.saberfazer.org/research?offset=1614705912896
Folclore.pt. “Ciclo do Linho – Saberes Tradicionais.” https://folclore.pt/ciclo-linho-saberes-tradicionais/#gsc.tab=0
Vasconcelos, José Leite de. Etnografia Portuguesa. Livro III, 1933. [Informação etnográfica sobre as voltas do linho, segundo gramadeira de Tolosa]
- Sou aprendiz dos paradigmas de FHW, Educação Profunda e Meta-relacionalidade desde 2019. Saber nos livros fundamentais: Hospicing Modernity e Outgrowing Modernity, da comunidade GTDF.
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🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência.
Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.