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 Ophiussa

 

Chegamos à presença antiga e sinuosa da Serpente, Ophiussa. Não é só um nome dado pelos geógrafos gregos para designar esta terra, mas a própria terra em forma de sonho, o tremor sagrado das entranhas da terra, a deusa zoomórfica e ctónica cujo corpo pulsa através da pedra, dos riachos e da história. Ophiussa é o sopro enrolado do tempo, aquela que além de viver no chão, é o subconsciente vivo da terra, sonhando-nos, enrolando-se, desfazendo-nos e refazendo-nos em cada curva da sua espinha mítica. Chega até nós em memórias primevas de pedra gravada.

O sonho de Ophiussa enrola-se pelas eras. O seu corpo ondulante é mapa aquático e cartografia profética, referência arcaica das margens vivas da realidade. Ela é irmã de Python, a serpente oráculo primordial de Delfos, cujo corpo enlaçado outrora guardava o omphalos, o umbigo do mundo, e cuja carne morta deu origem à voz sacerdotal da Pítia. Ela sussurra através do tempo com as sacerdotisas serpentes minóicas e cintila nos olhos escuros e aquáticos de Melusina, parte mulher, parte serpente, toda indecifrável. Em todas as culturas onde a serpente não é demonizada, mas reverenciada, ela carrega a sabedoria do submundo, do húmido, escuro e fértil desconhecido.

Ophiussa não é uma deusa a ser adorada no céu, mas uma força a ser metabolizada através da presença e da participação.

O seu corpo não está separado do nosso, está entrançado com a respiração, os instintos, as peles que se desprendem e os mantos que se desfiam. Ela chama-nos para lembrar que a regeneração não vem da transcendência, mas da descida, da digestão e da decadência. Imanência. A sua sabedoria é lenta e meândrica, não linear ou asséptica. Mistura-se com a lama primordial e a decomposição lúcida.

Ouvir Ophiussa é deixar as certezas amansarem, deixar a cauda do passado enrolar-se no pescoço do presente e envolver para algo antigo e ainda por vir. Caminhar pelo seu território é entrar na paisagem onírica do devir serpentiforme, onde cada passo é uma oração, cada pausa um portal, cada história uma metamorfose. Mesmo aqui debaixo dos nossos pés.

Ao recuperar Ophiussa como força viva e relacional, não invocamos um passado idealizado, mas abrimos uma fenda no presente saturado de pressa e amnésia.

Relembrá-la é cultivar um chão sensível para o agora, um chão serpenteante que ondula sob as camadas do tempo e nos convida a habitar a policrise não como falha a ser resolvida, mas como paisagem fértil de transmutação. A serpente não nos oferece redenção, mas metabolização. Ophiussa não nos promete salvação, mas a aquática e funda digestão lenta da dor e dos escombros. Ao escutá-la, começamos a sentir os contornos de um imaginário que ancora resistência sem endurecimento, e esperança sem negação. Insurgente. Porque talvez só enroscadas nas espirais da terra e da lama viva, lembrando que também somos húmus e nervura, possamos sustentar narrativas que não escapam ao fim de mundos, mas que se deixam germinar nas suas ruínas. Aqui mesmo, com os pés e o peito colados ao chão, escutando os sussurros do que ainda pode ser tecido.

Traduzido e adaptado do livro Tales of the Serpent and the Moon.
Imagem do Menir de Messines no Algarve.

⚠️ Nota Importante

O chamamento ao eco-mítico não é um retorno romântico a origens “puras”, nem um revivalismo nostálgico de essências perdidas. Ophiussa não é um símbolo a ser domesticado por ideologias identitárias, nem por práticas de desenvolvimento pessoal formatadas pelo individualismo neoliberal. As serpentes, tal como as sereias, não estão ao serviço do sucesso, do empoderamento ou da ascensão pessoal. São forças ecológicas arcaicas, soberanas e imprevisíveis e não serão silenciadas, superficializadas, higienizadas ou reduzidas a alegorias de auto-ajuda. São potentes entidades que nos relembram de quem somos e do nosso lugar na grande teia, tanto nos abraçam como nos estrangulam. Reverência. Tecemos relações com elas através das emoções ecológicas.

O activismo eco-mítico aqui evocado é radicalmente anti-fascista e anti-extrativista. Recusa qualquer fixação de sentido, pureza, progresso, superioridade moral ou meritocracia espiritual. A mitologia viva é um campo híbrido, mestiço, contraditório e poroso, onde memória e imaginação se dobram e desdobram como serpentes no húmus das nossas ruínas partilhadas.

A terra mítica de Ophiussa não se conquista, nem se escala. Habita-se, com respeito, tremor e escuta. É um convite à maturidade radical e não ao aperfeiçoamento pessoal. Aqui resistimos ao colapso não com técnicas ou soluções, mas com presença radical, estilhaçada e relacional. Aqui, o sagrado não é um troféu, é uma teia.

Lê mais sobre o Activismo Eco-Mítico.

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