Lá em cima na torre mais alta
Feita de osso e pedra
Mais subida que a árvore mais alta
Mais altaneira que as nuvens de tempestade
Quem te exilou lá?
Ou subiste à procura de segurança?
Escalaste-a sozinha, evitando o teu destino?
~
Destas alturas, podes ouvir os rugidos estrondosos dos trovões
~
Onde chegam os teus olhos no teu desterro?
Que horizontes se cruzam no teu isolamento?
~
Ouves a torre a desmoronar-se?
A Torre
A imagem da torre tem sido teimosa, estando sempre a infiltrar-se, em sonhos, visões e imaginações, numa presença persistente que se derrama pelos cantos da minha psique. Talvez seja o arquétipo do (meu) momento presente. O caminho do Activismo Eco-Mítico implica peregrinar intencionalmente pelos fundos dos dogmas invisíveis, levantando os pesados mantos que mantém os nossos símbolos culturais cativos de paradigmas obsoletos. Aventurem-se por vossa conta e risco, pois o território é acidentado e embruxado, uma vez entrando na torre não sei se é para subir ou descer.
Para tentar decifrar fragmentos da torre, procurei em várias fontes as suas histórias e desbravei os seus múltiplos mitos, pelos arquétipos que se querem universais, mas que são apenas europeus (e válidos nesse contexto).
A torre pode ser de bronze, marfim, pedra ou de vidro/cristal; pode não ter escada, janelas ou portas; pode ser edificada misteriosamente no meio da floresta, de um pântano, de um lugar devastado e longínquo ou num lugar secreto e mágico. A torre tanto pode ser um lugar de refúgio e segurança, como uma prisão e exílio; traz a imagem de isolamento e talvez solidão; tanto pode ser um símbolo de solidez como de ruína que cai aos bocados. A torre pode ser mágica e encantada, de vigia militar em defesa ou ataque, ou espiritual na sua versão de campanário, ou de cânticos em oração.
Pode ser um lugar de estudo e aprendizagem, que leva ao discernimento ou ao esquecimento, tanto de integração e fragmentação.
A Torre impõe devoção, paciência, perseverança, compromisso e bravura, tanto para nela fica como para dela sair. A torre tanto pode crescer alta ascendendo ao céu, como enraizar-se inscendendo nas profundezas do submundo, por poços e catacumbas, fazendo de intermediário entre o ctónico e o cosmos, num desejo de encontro desde o início dos tempos — “acredita-se que uma série de torres redondas em toda a África Austral esteja relacionada com os mitos das torres generalizados nesta zona, procurando unir o alto e o baixo (Archive for Research in Archetypal Symbolism 622 – Willis, 273).”
A Torre no Tarot
No tarot, as qualidades da torre falam de mudança interior, crise de identidade e destruição. Esta é uma carta que tem vários nomes, como A Casa do Diabo, A torre atingida por um raio, A Casa de Deus – O Hospital, A Torre de Babel – O Fogo do Céu ou Céu – O Castelo de Plutão. (Hundley et al. 310) Claro que é redutor trazer aqui a carta no seu aspecto sem “tiragem”, pois a força do Tarot é mesmo o movimento relacional e contextual entre tiragens e cartas.
Na imagem da carta surge um relâmpago ardente que incendeia a Torre. As chamas saem das janelas de pedra, os corpos saltam das alturas, aterrorizados, procurando escapar à destruição iminente e ao desmoronamento. Por vezes, outros objectos são mostrados a cair no ar: tijolos, pedras, moedas de ouro, gotas de água, pedaços de chamas ardentes. Às vezes a torre tem uma porta, noutras os seus lados de pedra sem rosto não mostram nenhum sinal de entrada ou saída. Quando o edifício tomba, o topo de uma montanha rochosa ergue-se para lá, o mundo natural indiferente à cena explosiva que se desenrola em baixo. (Hundley et al. 310)
A carta da torre descreve a necessidade das estruturas antigas caírem para dar lugar a novas. A pedra estilhaçada das paredes da torre é um símbolo de mudança súbita. Esta é uma carta que significa mudanças importantes e radicais, transformações revolucionárias que abalam as fundações e derrubam as tradições. A velha forma já não é viável. Aparecem as fendas, o céu abre-se, os tijolos desmoronam-se. Por vezes, a catarse chega sem ser solicitada e sem ser esperada. Não há fuga possível. Caos, rutura, fissura provocada pelo relâmpago da intuição. Seja qual for o método, a ilusão deve e será quebrada. Os mundos desmoronam-se e, voltam a erguer-se. As mentiras dissipam-se, a perspectiva muda violentamente e, à medida que a poeira assenta, as primeiras novas flores emergem dos escombros. (Hundley et al. 310)
Mas a torre como chamada à ascensão e caminho para a transcendência, na confusão ocidental dos conceitos de evolução e progresso hierárquico — achamos que evolução e desenvolvimento são o mesmo que progresso linear numa escada hierárquica, quando a evolução se desdobra em rede e sem hierarquia — para atingir o tão desejado excepcionalismo empobrece a alma ecológica pelo esforço unidirecional para chegar ao topo. Talvez haja algo a aprender, voltando-nos humildemente para a torre nas profundezas da floresta e esperando pacientemente por novas visões. (Archive for Research in Archetypal Symbolism 622)
Integração dos opostos complementares
Feminino e Masculino
A visão binária é, entre outras coisas, uma subjectividade da psique cultural ocidental, por isso tanta simbologia se movimenta dentro desta estrutura redutora que se reclama como a realidade. O binário é só e apenas uma polarização de um ritmo muito mais complexo e pleno de diversidade. No entanto, e, porque estamos neste contexto simbólico eurocentrado, deixo a seguir uma leitura dual sobre a torre.
A forma erecta da torre faz dela um símbolo fálico evidente; a sua estrutura vertical exprime hierarquias de superioridade e consequente inferioridade, poder e impotência. (Chevalier and Gheerbrant) A torre como lugar de comando sobre o lugar e de força sobre quem aprisiona como castigo, traz-nos uma e outra vez ao lugar de domínio sobre o outro e sobre o território.
Mas o interior da torre evoca o contentor feminino, na versão torre-poço, com as masmorras escuras em baixo — que aprisionavam os proscritos. O movimento volta-se para o interno, permitindo também a reflexão e o estudo. (Archive for Research in Archetypal Symbolism 622; Chevalier and Gheerbrant) Mas, estar fora de contacto com o chão, ao viver numa torre de marfim — a torre alva que teve a origem na preservação da pureza da Virgem Maria — pode transmutar-se para um auto-isolamento egocêntrico e hiper-individualista.
Psique, Danae, Virgem e Santa Bárbara
{histórias femininas da torre}
Na história de Eros/Cupido/Amor e Psique, Afrodite/Vénus, ciumenta, dá à rapariga mortal Psique a tarefa aparentemente impossível de descer ao submundo e trazer de volta uma caixa com a beleza de Perséfone/Prosérpina. Psique está prestes a desistir em desespero, quando lhe são dadas instruções sobre como os protocolos de segurança para passar pelo submundo, por uma torre sensível. Na sua última e mais difícil prova, ao ser ajudada pelos conselhos da torre senciente, aprende os traços da torre por vezes necessários — ser clarividente, ter distância emocional e discernimento; traços pseudo-objectivos e prestigiados pelo patriarcado como a única forma correta de avaliar qualquer situação. A torre diz-lhe como cumprir a sua missão, avisando-a apenas de que nunca deve abrir a caixa. (Archive for Research in Archetypal Symbolism 622, Neumann, 110-11; Sherman 507; Haase 288).
Há também a história do rei chamado Acrísio cuja filha se chamava Danae. Um oráculo avisou Acrísio que o filho de Danae seria quem que o iria matar. Amando mais a vida do que a sua filha, Acrísio fechou Danae numa torre de bronze sem porta e apenas com uma pequena janela. A sua filha nunca se casaria nem teria filhos, deixando-o a salvo da profecia, pensou ele. Mas uma chuva de ouro entrou pela janela da torre de Danae transformando-se no esplêndido Zeus. O deus e a mulher mortal amaram-se e, com o tempo, Danae deu à luz um filho, a quem chamou Perseu, que matou Acrísio. (Sherman 624)
Segundo o Dicionário dos símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números, a tradição monoteísta cristã inspirou as construções militares e feudais, erigidas em torres, atalaias e torreões — a torre tornou-se símbolo de vigilância e de ascensão. Encontramos o símbolo da torre nas ladainhas da Virgem Maria, turris Davidica, turris eburnea, que traz a torre de marfim, com origem na pureza da Virgem, ou no necessário isolamento como proteção da alva castidade; e o silêncio da torre, que eleva a alma até Deus. (Archive for Research in Archetypal Symbolism 622; Chevalier and Gheerbrant) Na Idade Média, as torres serviam para espreitar eventuais inimigos, mas não nos esqueçamos da escada, as relações entre céu e terra, unidas por degraus. Cada andar da torre marcava uma etapa na ascensão, na elevação do peso carnal à espiritualidade pura. (Chevalier and Gheerbrant) Fixada num centro (centro do mundo), a torre é, no ocidente, um mito ascensional e transcendental. O campanário, traduz uma energia solar geradora à terra a cada toque de sino. (Chevalier and Gheerbrant, DAVR, 228, 229) Lembro também do verbo torrar, queimar ou secar pela acção do sol, provavelmente ligado a antigas práticas de preservação alimentar efetuadas em lugares altaneiros tisnados pelo sol.
Por fim, temos Santa Bárbara, invocada para as tempestades e protetora dos que trabalham com o fogo, bombeiros e militares, mineiros, escavadores e construtores de túneis, que traz consigo a torre como símbolo. O seu pai não queria que ela convivesse numa sociedade imoral e corrupta, construindo uma torre de duas janelas, onde a trancou para guardar a sua beleza e pureza, evitando a contaminação com a degradação exterior. Após a conversão de Bárbara ao cristianismo, ela mandou abrir uma terceira janela na torre, simbolizando a Santíssima Trindade, o que enfureceu o seu pai e provocou o seu martírio, pois o Cristianismo era proibido. Ao matar Bárbara, o pai é morto por um raio em chamas. Santa Bárbara une, na sua simbologia, o fogo, a torre e as suas catacumbas subterrâneas.
A Torre nos Contos
As primeiras histórias escritas datam do primeiro milénio A.E.C. Os primeiros exemplos mostram que os elementos básicos para uma boa história já existiam nessa altura. O conto egípcio O Príncipe e os Seus Três Destinos ou Príncipe Condenado, data do reinado de Seti I ou Ramsés II (c. 1314-1237 AEC), inclui temas familiares, como a criança/princesa na torre secreta ou, em algumas versões, na torre/montanha de vidro, que só pode ser salva por um verdadeiro herói. E esta história é certamente mais antiga do que a versão escrita. (Sherman 123) Seguem-se alguns exemplos de contos que incluem torres.
O popular romance medieval de Aucassin e Nicolette foi criado por um trovador anónimo do século XIII. A história começa com o conde Bougar de Valence em guerra contra o conde Garin de Beauclaire. O filho do Conde Garin, Aucassin, estava apaixonado por Nicolette, afilhada do Conde Bougar. Nicolette era uma escrava comprada pelo Conde Bougar aos sarracenos e convertida ao cristianismo. O Conde Bougar planeara casá-la com um homem rico, mas o pai de Aucassin recusou que o seu filho casasse com uma antiga escrava. O Conde Garin, desiludido com a insistência do filho, planeia matar Nicolette. Para a proteger, o Conde Bougar fechou-a numa torre alta. Entretanto, Nicolette fugira da sua torre solitária e tinha-se escondido na floresta. (Sherman 41)
O motivo popular da Princesa na Torre faz parte de um tipo de conto antigo. Nestes contos, uma princesa é mantida sozinha ou aprisionada numa torre até ser resgatada, ou conquistada pelo herói. Numa variante da história de base, a princesa, ou por vezes um príncipe, foge da torre no início da história para encontrar o seu para encontrar o seu próprio destino. A torre é construída com diferentes materiais nas diferentes histórias, pode ser feita de vidro ou de pedra vulgar, e normalmente, não tem entrada ou saída óbvias. A primeira versão vem do Egito (ver acima o Príncipe Condenado), e abarca duas variações do motivo. Na primeira o príncipe é mantido numa torre pelo pai para o proteger do seu destino. Na segunda a princesa é mantida numa torre pelo seu pai para que apenas o melhor homem a possa alcançar. O príncipe sai da sua torre e salva a princesa. A versão mais conhecida é o conto europeu da Princesa na Torre de Vidro ou no Cimo da Montanha de Vidro, em que o herói tem de subir a montanha ou resgatar a princesa da torre. Neste tipo de conto, a princesa é um mero prémio a ganhar. Talvez a versão mais conhecida seja dos Irmãos Grimm, Rapunzel, onde o cabelo comprido de Rapunzel é a única forma de entrar e sair da torre. (Sherman 367) Por outro lado, nos contos contados a partir de uma perspetiva feminina, o príncipe é muitas vezes relativamente passivo, servindo principalmente para facilitar um casamento real para a heroína. Tal como na versão original de Rapunzel, publicada pela primeira vez em 1634 por Giambattista Basile em Lo cunto de li cunti. A história de Basile retrata uma jovem mulher aprisionada numa torre por uma ogra. Um príncipe passa por ali e acede à torre subindo pelos longos cabelos da heroína, sendo ela quem despoleta toda a acção. (Haase 811)
No conhecido conto da Bela Adormecida, os primeiros vestígios do enredo na literatura aparecem em duas obras anónimas do século XIV, o romance catalão Frayre de Joy et Sor de Plaser e o episódio de Troilo e Zellandine na conclusão do terceiro livro do romance francês Perceforest. Em ambas as obras, os elementos fundamentais do enredo aparecem na sua forma inicial: uma jovem beldade, chamada Sor de Plaser no romance catalão e Zellandine no Perceforest, cai num sono encantado sendo encerrada numa torre encantada, onde é encontrada por um jovem. Nestas variantes, o jovem engravida-a e ela dá à luz muito antes do seu despertar e posterior casamento com o jovem. (Haase 923)
Na Princesa Discreta ou as Aventuras de Finette, de Marie-Jeanne Lheritier de Villandon, três irmãs são trancadas numa torre para proteger a sua virtude. As duas irmãs de Finette sucumbem às seduções do astuto príncipe e rapidamente ficam grávidas. (Haase 164) Outro conto, The Little Lame Prince and His Travelling Cloak (1875), conta a história de um príncipe coxo que foi usurpado e aprisionado numa torre pelo seu tio. O príncipe recebe da sua fada madrinha um manto mágico que lhe permite voar por todo o mundo, mas sem tocar em nada. Após a morte do seu tio, torna-se rei e governa sabiamente. (Haase 280) No poema feminista Rapunzstiltskin, a heroína é autossuficiente, feliz na sua torre, e infeliz é o aspirante a herói que a vem “salvar”. Neste caso, a combinação e a revisão irónica dos dois contos clássicos, Rapunzel e Rumplestiltskin, evidenciam o desejo da autora de subverter não só os papéis masculinos e femininos tradicionais dos contos originais, mas também a forma convencional dos próprios contos. (Haase 269)
A Torre nos Contos Portugueses
Em muitos contos, a torre também desempenha um papel nas provações da heroína — ligadas aos ciclos de sangue, menarca, menstruação e parto. Neste caso, a torre sugere a necessidade de um tipo diferente de visão de longo alcance, de resistência paciente na solidão, por representar o momento vulnerável de uma metamorfose inevitável. (Archive for Research in Archetypal Symbolism 622)
A jovem rapariga ou princesa é aprisionada numa torre, situada no meio de uma floresta ou de uma terra abandonada e devastada pela guerra, numa reclusão forçada para preservar a sua virtude ou de vergonha pela sua pureza devassada (como numa gravidez sem casamento). Genericamente, nos contos portugueses, a torre assume um lugar fantasmagórico e sombrio — da morte, dos corvos, da sonolência, da má sorte, das águas vermelhas — de um cativeiro e de onde não se retorna. Afinal a torre também se chama a Casa do Diabo no tarot. Seguem-se alguns exemplos de contos:
- O conto Os Três Príncipes e a Donzela — Ela morre, mas é ressuscitada pelos seus esforços unidos. Incapaz de dizer em qual dos três ela deveria dar a mão, fecha-se numa torre, e eles fazem o mesmo: “A donzela apresentou-se agora e disse: “Como vocês os três têm o direito de casar comigo, e como não posso ter três maridos ao mesmo tempo, não casarei com nenhum de vós”! A donzela fechou-se numa torre; e os três príncipes, muito desapontados e de luto, também se retiraram para uma torre sombria.” (PEDROSO 5, 66)
- O conto A Criada e a Negra — Houve uma vez uma donzela aprisionada numa torre. Ela estava muito ligada a um príncipe, que costumava vir todas as tardes para falar com ela. Esta rapariga soltava o cabelo da torre, e por este meio o príncipe podia subir e manter uma conversa com ela. (PEDROSO 9)
- O conto A Donzela Encantada — (…) A donzela encantada subiu para a torre mais alta, para se despedir dele e poder vê-lo por uma longa distância à medida que ele se deslocava. (PEDROSO 29)
- O conto A torre da má sorte — De onde ninguém consegue voltar. (PEDROSO 34); esta torre é também chamada “Torre da Sonolência”: Quem lá vai, permanece, e nunca regressa. Quem lá vai, nunca regressa. (PEDROSO 86)
- O conto O Filho Ocioso do Padeiro — “A princesa começou então a sentir que estava grávida, e o rei ficou muito descontente com ela, e ordenou-lhe que fosse aprisionada numa torre com as suas damas de honor.” (PEDROSO 52)
- O conto As Fatias de Peixe — “O irmão mais velho, depois de ter viajado durante muitos dias sem chegar a nenhum país, chegou finalmente a um onde havia uma torre muito alta. Ele permaneceu numa casa, onde no final de uma semana casou com a proprietária da mesma; e quando já estava casado, perguntou à sua esposa que torre poderia ser, e ela informou-o ser a “Torre da Morte”, pois quem entrou nela nunca mais voltou vivo.” (PEDROSO 72)
- O conto O Príncipe que tinha a cabeça de um cavalo — “(…) naquele instante um corvo entrou pela janela e começou a bater na rapariga com as suas asas, dizendo: sua ingrata! Muito ingrata! Quebraste o meu feitiço! E se desejares encontrar-me de novo terás de usar um par de sapatos de ferro a caminho da Torre dos Corvos;” (PEDROSO 74)
- O conto As Três Pedras Azuis Pequenas — “o príncipe mandou-o imediatamente para a prisão, e colocou a rainha e a sua irmã numa torre;” (PEDROSO 81)
- A Traseira da Maçã Dourada — “O homem que roubara a maçã, vendo o jovem no navio, mandou prendê-lo e calar-se numa torre. O jovem levou o gato com ele para a torre. O homem que lhe fornecia comida só lhe dava um feijão todos os dias, e o rapaz comia metade e dava a outra metade ao gato;” (PEDROSO 84)
- O conto Os sete veados — “(…) De combinação com o rei, seu pai, resolveu o príncipe que morresse enforcada. Foi logo metida numa torre e no dia seguinte mandou o rei deitar pregão de que a princesa ia a enforcar. Reuniu-se muito povo de roda da forca esperando a princesa (…) Esperaram e viram vir sete veados; saltou o primeiro sobre a forca e transformou-se logo num homem; saltaram mais cinco sobre a forca e em homens se mudaram; e o último veado, que era o mais pequeno, esse teve de saltar três vezes para se desencantar.” (LAGES 149)
- O conto Eu vi-te, tu não me viste — “Era duma vez um rei e uma rainha que não tinham filhos e viviam muito desgostosos por isso; mas um dia, a poder de muitas promessas, teve a rainha uma filha muito bonita. Mas ao fim de três anos, uma velha roubou a filha à rainha, entregou-a a uma ama e meteu ambas numa torre e todos os dias ia levar-lhes de comer;” (LAGES 158)
- O conto O afilhado do rei — “O rei mandou logo saber quem era que tocava. Disseram-lhe que era o criado do seu afilhado e o careca ficou banzando e disse logo ao rei que o seu criado lhe dissera que era capaz de ir desencantar a princesa real à torre das águas vermelhas.” (LAGES 159) De recordar que, nos ciclos de menstruação e femininos nos contos, a donzela púbere cairá num encantamento avermelhado (possivelmente adormecida ou alienada de outra forma) na morada do pai ou aparecerá fechada numa torre/poço/montanha de vidro, ou ainda será entregue a alguma besta lunar, como um dragão. (Haase 168)
A Torre — Antropocêntrica, Colonial e Patriarcal
A torre é uma construção humana e colonial, que tanto fala da conquista da técnica e extração de materiais para a erguer, como da domesticação e controle do espaço circundante: “As fortes muralhas das torres serviam outrora como fortalezas protectoras, de onde os inimigos podiam ser descobertos à distância. Gradualmente, as cidades cresceram à volta das torres e tudo o que estava para além delas era considerado deserto. Simbolicamente, estas “torres de força” tornaram-se as estruturas da sociedade, onde as suas organizações nos protegem do regresso do caos que parece ameaçar sempre à distância. Os arranha-céus das cidades modernas continuam a ser os orgulhosos sinais da civilização. (Archive for Research in Archetypal Symbolism 622)”
Conquista, extração, domesticação e controle são trazidos aqui, não no seu lado amplamente celebrado na psique colectiva ocidental de “civilizar”, mas assumindo o seu lado sombra, o legado destrutivo e violento que deixa ruínas à sua passagem. Ou seja, reconhecendo as consequências devastadoras destas implacáveis acções civilizadoras pelos escombros tóxicos que permanecem nas ilusões de superioridade e que asfixiam a vida.
A torre é um arquétipo de uma psique hierárquica, excepcionalista e centrada no humano. No seu movimento primário de se erguer alto, de se estender muito para cima, tenta sair, transcender a teia da vida, prevalecer sozinha acima do ecossistema. Na antiguidade reportava ao movimento e peregrinações e vigias espirituais e de defesa nas montanhas — “Zigurates, pirâmides e stupas são torres antigas criadas à imagem da montanha cósmica (…) As torres e minaretes das igrejas também perfuram os céus no centro dos seus mundos espirituais, de onde os sons dos sinos e as orações marcam o espaço e o tempo sagrados.” (Archive for Research in Archetypal Symbolism 622).
Antes dos animais serem fechados na categoria de monstros inferiores, havia também o apelo dos céus, de subir pelo voo dos falcões, “voar alto para se abater sobre a presa”, ou das cotovias “voar alto no ato de cantar”. Ao longo do tempo a ascensão deixa de estar ancorada no corpo e na terra, nos animais e no ecossistema, como uma celebração da diversidade da rede da vida, tornando-se numa imposição hierárquica da monocultura da pureza do transcendente.
O motivo da torre de babel, por exemplo, encontra-se no sudeste de África (Zimbabué e seus vizinhos): o da torre construída para permitir o contacto com o céu. Cai, provocando desastres. (Haase 57) A torre de Babel, que os descendentes de Noé pretendiam edificar na ambição de chegar até ao céu, levou Deus a castigá-los, fazendo-os falar línguas diferentes e obrigando-os a interromper a construção: “Por vezes, porém, podemos chegar demasiado alto, procurando apenas os falsos deuses do lucro e do progresso vazio. A história bíblica da Torre de Babel alerta para a arrogância de construir demasiado perto do céu e para as consequências de ultrapassar os limites humanos. (Archive for Research in Archetypal Symbolism 622)” Esta acção de Deus, de castigar pela diversidade linguística, fala da ignorância da psique ocidental, onde a diversidade é tida como uma ameaça à monocultura instituída. Não deixa de ser interessante como a matriz simbólica da torre não suporta a diversidade, pois tornou-se símbolo de solidão, isolamento e reclusão.
Turris Eburnea — Sombra Paradigma Ocidental
Comecei por procurar os motivos míticos e simbólicos da torre, por sentir que tenho estado dentro da torre, sem capacidade de comunicar com o exterior, numa mistura de reclusão escolhida e de prisão imposta. Tanto sinto as paredes grossas de separação da torre, como vejo o horizonte pelas janelas, como a sinto a implodir pela base, com a natureza teimosamente a eclodir das suas fundações. Afinal a torre é muitas vezes uma prisão feminina. Recordo a alva torre de marfim, que pretende preservar a pureza da Virgem Maria, que reporta ao acto de enclausurar e refugiar na sua importância, também enunciando isolamento egocêntrico. Tal como um evitar do inevitável e complexo entrelaçamento ecológico, e da interseccionalidade transdisciplinar, cruzando paradigamas, como parte do caminho de responsabilidade e maturidade cultural.
Juntando todas as peças, e recordando que estas estruturas simbólicas não são (nunca foram) universais, mas profundamente contextuais, trago a Turris Eburnea, a torre de marfim, como sombra excepcionalista e individualista do paradigma ocidental. Representando o enclausuramento da psique moderna ocidental nos seus valores unilaterais e superiores de neutralidade, objectividade e verdade.
Perante os problemas perversos criados e alimentados pela cultura que constrói a torre, muitos dos especialistas criados pela modernidade ocidental e ancorados nas suas instituições oficiais, mantém-se fechados no seu próprio paradigma, enclausurados nas suas estruturas invisíveis de dogmas antropocêntricos, profundamente raciais, coloniais, capitalistas e patriarcais. Se não, vejamos:
- A torre como proto-cidade, como representante de edifícios militares, de controle, conquista, domínio e extirpação do território, domesticando a sua diversidade, transformando-a em monocultura (desde diferentes línguas a variados pontos de vista, paradigmas ou quadros de referência; até reduzir a diversidade em ecossistemas inteiros em constante extração de recursos).
- A torre como reclusão imposta ao feminino sobre o pressuposto de proteger a sua pureza e inocência. Num jogo de forças patriarcal que mantém a mulher cativa de uma imaturidade e moralidade a-corporal e a-sexual. A vergonha e virgindade pura a ser protegida, tornando a figura da velha bruxa maléfica e ignóbil.
- A torre como o suposto inevitável e natural movimento hierárquico de ascensão e transcendência na monocultura do divino, que só se elevar acima da terra e do corpo, num perverso exílio e esquecimento da plural imanência.
- A torre feita de marfim com o seu fundo racial e colonial, onde a brancura é tida como sinal de virtude e pureza, ao contrário da negritude que é a perversão, mentira e corrupção moral (padrão presente em todos os contos europeus); assim como o marfim, que após milénios em trocas comerciais, é sistematicamente usurpado pelos poderes imperiais, numa imposição de escravatura do território, das suas gentes e ecossistemas — num curto e pequeno exemplo, tal como acontece com as práticas necro-capitalistas e neo-coloniais da mineração de metais para as baterias, numa perversa ilusão de transição energética que ignora a violência, genocídio e ecocídio.
- Mas, tal como do topo da árvore mais alta ou da montanha, do alto da torre tem-se a possibilidade de uma visão viva e integrada mais ampla. Consegues ver?
O que quero dizer é que as nossas subjetividades simbólicas estão pré-definidas pelo contexto cultural. Não são acasos, livres e aleatórios. Os símbolos que atravessam a nossa imaginação, sonhos e visões são derramados pelo substrato cultural ao qual pertencemos, reféns das crenças e história. Não são universais nem permanentes, mas profundamente contextuais, de uma riqueza singular de cada contexto vivo. A torre não é excepção. Ao sentir-me aprisionada na torre, estudei-a, observei-a e toquei na sua vulnerabilidade: como qualquer elemento da civilização precisa de manutenção constante, de se conservar na sua imobilidade, para se manter, pois de outra forma torna-se ruína, cai, destrói-se, corrompe-se (como tudo pertence ao ciclo natural que inclui a decadência e decomposição). A manutenção que refiro é também a teimosia e o vício de não querer, não conseguir, ver e ser mundo para além das redutoras lentes da cultura moderna ocidental, mantendo-nos na monocultura do legado colonial, seguros da nossa superioridade moral e técnica na torre de marfim.
A torre como tempo-lugar limítrofe de transformação profunda dos contos portugueses — da morte, dos corvos, da sonolência, da má sorte, das águas vermelhas — “de onde pode não se regressar”, surge como uma advertência da dificuldade de mudar de quadros de referência. E como possibilidade de transformação. Humildemente podemos permitir que a torre caia, retornando ao ciclo e teia da vida, mudando do paradigma de conquista e progresso, e regressando ao chão, onde a vida eclode ciclicamente. O que cresce nos escombros do controle da torre?
A magia é que, sem as paredes grossas de proteção e reclusão, podemos voltar aqui, ao corpo-lugar, em participação e relação directa com a vida. Não precisamos de nos destacar lá em cima, só precisamos de pertencer.
Referências
- Archive for Research in Archetypal Symbolism. The Book of Symbols. Edited by Ami Ronnberg, et al., Taschen, 2010.
- Chevalier, Jean, and Alain Gheerbrant. Dicionário dos símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Ed. Teorema, 1994.
- Haase, Donald, editor. The Greenwood Encyclopedia of Folktales and Fairy Tales. Greenwood Press, 2008.
- Hundley, Jessica, et al. Tarot. Edited by Jessica Hundley, Taschen, 2020.
- Lages, Mário F. Contos Populares Alentejanos Recolhidos Da Tradição Oral. Universidade Católica Portuguesa, nd.
- Pedroso, Consiglieri. Contos Folclóricos Portugueses. Sociedade Do Folclore, 1882. WikiSource.org, https://en.wikisource.org/wiki/Portuguese_Folk-Tales#111. Accessed 24 8 2021.
- Sherman, Josepha, editor. Storytelling An Encyclopedia of Mythology and Folklore. Sharp Reference, 2008.
- https://www.ieed.com.br/post/o-simbolismo-de-santa-b%C3%A1rbara
- https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/torre
- https://dicionario.priberam.org/torre
- https://www.etymonline.com/word/tower
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O Nectar de Siduri
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A Menina Cabra – Belinda e Benilde
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Os Deuses da Modernidade
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Psique . Corpo . Terra
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Mitologia Crua
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A Riqueza do Parentesco Selvagem
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O Sol Negro
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O (tanto) que deixámos de escutar
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Cartografia do livro “O Santuário” – parte 3
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Cartografia do livro “O Santuário” – Parte 2
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Investigação-Oração
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Siduri
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Outubro quente, traz o diabo no ventre.
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Nossa Senhora da Orada
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Cartografia do livro “O Santuário” – Parte 1
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Psykhē Ecossistema
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O Sonho da Velha
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Contos Antigos para os Tempos Modernos
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A Fome
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Silenciar e Esquecer
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Literacia do Mistério
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A (isolada) mente-dédalo e o (relacional) corpo-labirinto
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A Serpente e a Lua
🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência.
Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.