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De volta às Sereias

Corpos míticos de água e sabedorias fluidas

 

Este post foi escrito a partir do meu ensaio de 2022, D.Marinha – Water-centric forgotten Wisdom, partes do qual estão no livro O Santuário.

Na modernidade, tendemos a sequestrar todas as coisas como símbolos pessoais e as Sereias não são exceção. Mas isso é somente o começo do convite eco-mitológico, pois não se limita a imagens arquetípicas.

As Sereias não são só emissárias psicológicas, mas ecos soberanos e incorporados da paisagem viva, nas correntes, marés, nevoeiro, no canto dos pássaros, nas canções das focas, na acústica das rochas costeiras, nos salpicos da espuma salgada, nas ecologias em constante mudança. São seres que emergem em múltiplas dimensões, vivendo ecologicamente em ciclos sazonais de fluxo e refluxo, migrações de pássaros e ritmos de mamíferos marinhos; carregando a história em santuários submersos, caminhos de pesca ancestrais e lendas de inundações ligadas à geografia local; cantando o tempo através da acústica moldada pelo vento em falésias e recifes, gerando mundos sonoros complexos que moldaram o significado mitopoético.

Convidar as Sereias através da eco-mitologia é ouvir além da psique pessoal, uma ecologia polivocal que é relacional, historicamente situada e viva. As sereias são o nosso campo aquático comum, falando através da pressão atmosférica, da ressonância das rochas e da vida marinha, resistindo a serem reduzidas a um único registo simbólico.

A eco-mitologia pede-nos para seguir a sua canção para fora, para paisagens aquáticas que excedem as nossas mentes, numa sintonia sensorial e relacional expandida com o lugar. Nesta abordagem, o mito é meteorológico, topográfico, biológico e ancestral. Um espelho e uma corrente espelhada que nos convida a navegar não só pelo terreno interior, mas também pelas ecologias relacionais. Que possamos continuar a mover-nos, psique e ecologia, como uma onda entrelaçada. Pois os nossos corpos, recipientes encharcados de orvalho, suor e lágrimas, carregam as memórias de uma profunda afinidade aquática. As nossas línguas falam sal e os nossos sonhos são movidos pelas marés.

Efetivamente as Sereias não são apenas figuras do folclore; são inteligência eco-mitológica, guardiãs da sabedoria das marés, narradoras das correntes e oráculos do liminar. Falar delas é uma recuperação epistémica e uma lembrança ontológica. Esses seres míticos já foram a personificação primitiva dos ritmos ecológicos e da sensibilidade elementar. No entanto, a mentalidade moderna dominante, centrada na terra, que teme a fluidez e venera o controlo, há muito distorce e domestica as suas canções.

O esquecimento é ontológico.

As epistemologias lineares da modernidade, enquadradas pela conquista, medição e controlo mecanicista, separaram a imaginação relacional da incorporação ecológica. A sereia tornou-se um monstro a ser conquistado, uma sedutora a ser silenciada, uma alucinação a ser diagnosticada. Entretanto, o profundo campo relacional, onde o nevoeiro sussurra verdades, as focas tornam-se mensageiras míticas e a acústica costeira sintoniza a psique, foi achatado em dados estáticos.

Mas e se, como seres relacionais, optarmos por nos sintonizar novamente?

E se compreendermos que os cantos das sereias não são distrações do conhecimento «real», mas convites para uma cognição fluida, onde a água se torna uma professora da impermanência, da reciprocidade e da profundidade insondável?
E se os mitos não forem mentiras que superamos, mas verdades que somos convidados a reocupar com nuance e responsabilidade?

É aqui que as ontologias marinhas, descritas por investigadores como Ingersoll, se tornam vitais. Lembram-nos que o conhecimento não se limita à lógica da clareza ou da legibilidade. O conhecimento pode ser como a maré, nebuloso, extático e fascinante. Pode vir através do ar salgado, do canto dos pássaros ou do som do seu próprio batimento cardíaco em sintonia com a tempestade.

Porque as Sereias não são fantasias, mas embaixadoras metafóricas da literacia da água, lembretes vivos para recordar o metabolismo planetário no qual estamos entrelaçados. A sua canção lembra-nos que o limite do conhecimento não é o fim, mas um limiar. Voltar às Sereias é arriscar lembrar. Reentrar na sua canção é quebrar a rigidez antropocêntrica que colonizou tanto a mente quanto o mar. É cantar, novamente, num campo onde a narrativa, a sintonia ecológica e a imaginação mítica não são disciplinas separadas, mas fluxos co-emergentes.

Que possamos não apenas escrever sobre as sereias, mas com elas. Que possamos deixá-las assombrar as nossas metodologias, as nossas cosmologias e as nossas marés diárias. Que ouçamos na névoa e flutuar na incerteza, lembrando que, como a água, a sabedoria encontra o seu caminho através das fendas.

Porque não precisamos de mais clareza, precisamos de coerência com a relacionalidade húmida, lágrimas selvagens da vida.

A recuperação das Sereias como seres soberanos e eco-mitológicos não é um gesto de fantasia nostálgica, mas um ato radical de deslocamento ontológico. Ao devolvê-las ao campo relacional de onde nunca deviam ter sido extraídas, abrimos passagens para formas de conhecer e narrar o mundo que não se prendem à lógica do controlo, da certeza ou da centralidade humana. Estas figuras não são apenas símbolos, são teias sensíveis de sabedoria contextual, portais para modos de sentir o lugar com o corpo inteiro, com os ossos húmidos da profundidade. Ao escutarmos as Sereias, escutamos também as lágrimas da Terra, os fluxos das perdas irreparáveis, a beleza trágica do que já não pode ser salvo. Mas ao invés de fugirmos da dor, ancoramo-nos nela, permitimos que nos funda e nos reoriente, tal como a maré que lambe a ruína e fertiliza de novo. Esta é a literacia da água e a consciência aquática… não nos promete soluções, mas sustém-nos em entrelaçamento. E talvez seja justamente este canto, salgado, ondulante, tempestuoso, que nos permita respirar sob a pressão do colapso, sem nos rendermos à separação.

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