Rezos do Vento e do Barro

Edições Corpo-Lugar

 

Entre lume e névoa, as palavras voltam a ter corpo.
Aqui, o ego é barro que respira, o colonizado é raiz que recorda, o pensar é vento que desaprende a mandar.
Cada conto reza o mundo com a voz da terra viva, onde o humano moderno se desfaz em húmus e o mito volta a ensinar o real.

TEMPO DE LEITURA – 3 MINUTOS

A partir de uma conversa com uma amiga e do capítulo Gossip, or In Praise of Chaos, de Lorraine Code (ver abaixo), criei uma história e fiz algumas anotações sobre a intimidade e a coscuvilhice como forma ecológica de relacionar.

As Aranhas Ouvideiras

Dizem os velhos do monte, mas dizem baixinho, quase como quem sopra brasas, que debaixo da terra vive uma comunidade antiga, invisível aos olhos apressados: as Aranhas Ouvideiras, tecedeiras do mundo íntimo que se sussurra.

Não são aranhas como as de cima. As Aranhas Ouvideiras têm corpos feitos de sombra húmida e fios tão finos que parecem respiração. Vivem entranhadas no húmus, entre micélio que cintila e raízes de carvalhos milenares que descem como veias. Ali, no escuro fértil, tecem não para capturar, mas para escutar. Lentamente, no tempo dos vínculos, como quem espera a couve crescer para depois fazer a sopa.

As Aranhas Ouvideiras não olham o mundo de cima. Deitam o corpo inteiro no chão do mundo. Escutam de lado, encostando o ouvido ao coração da terra. É assim que conhecem: pelo tremor do não-dito, pela vibração de um segredo, na respiração interrompida de quem sofre em silêncio. Cada fio que tecem é uma conversa íntima. Fio que passa pela cozinha onde duas mulheres cochicham enquanto a sopa ferve, pelo curral onde a cabra geme baixinho, pela sombra onde uma árvore partilha o rumor das suas folhas. E tudo isto, o trivial, o doméstico, o invisível, desce pelo solo e chega às Aranhas como sabedoria horizontal: não ordenada nem universal ou “científica”, mas viva, afetiva, arriscada.

As Aranhas Ouvideiras tecem uma rede que sabe sem ver, ao dizerem que saber não é recolher dados, e sim ser atravessada por histórias. Quando uma delas vibra o fio, todas sentem: o medo, o desejo, o erro possível, a vergonha pequena que ninguém diria em voz alta, o amor escondido que muda o rumo de uma aldeia inteira, o luto fundo que teima em co-habitar. Nada disto passaria num livro de atas ou num relatório médico, mas ali, debaixo da terra, cada fragmento é alimento. O micélio mastiga os afetos, os segredos e as partilhas, devolvendo-os mais densos e sábios. As raízes bebem e passam-no adiante. E as Aranhas tecem-no em rumor coletivo, como pássaros em revoada que mudam de direção ao sentir o ar.

Uma vez, os humanos lá de cima quiseram saber “a verdade”, limpa, clara, vertical. Desceram com pás, lanternas, máquinas de medir, queriam dados e certezas. As Aranhas esconderam-se, os fungos apagaram a luz e as raízes fecharam as bocas. Porque naquele reino subterrâneo, a verdade nunca foi estatística, foi sempre relacional. Nunca foi “o que é assim”, mas “como nos sentimos juntos”. Os homens voltaram de mãos vazias. Não entenderam que o que procuravam não vive separado da sujidade, não cresce sem a lama, não se repete fora da intimidade.

Dizem que, quando um te deitas de barriga para baixo e encostas o ouvido ao chão, a rede inteira vibra. As Aranhas aproximam-se, curiosas com a cabeça estranha que escuta como elas. E se te aquietares, sem querer dominar, sem querer saber “para ensinar depois”, as Aranhas tecem ao teu redor uma pequena teia, não para prender, mas para pertencer. Nessa teia, sentes: que saber dói, que saber envergonha, que saber é arriscar estar errada e ainda assim continuar a amar o mundo. E percebes, devagar, que conhecimento verdadeiro não se colhe, co-emerge em vínculo fundo.

“Quem quiser verdade, ponha o corpo no chão. Quem quiser saber, aprenda a ouvir de lado. Porque há conhecimentos que só nascem onde o micélio toca as raízes e as Aranhas Ouvideiras tecem as palavras que ninguém ousa dizer, lembrando que o invisível também fala e que o mundo só se sustenta porque alguém, no escuro, continua a tecê-lo.”

✦ O “pensamento horizontal” de Lorraine Code

  • Lorraine Code traz o conceito de “pensamento horizontal” no contexto da sua filosofia do pensamento ecológico, dando valor epistémico significativo à coscuvilhice, argumentando que esta pode desafiar as epistemologias dominantes.
  • Lorraine Code explorou o valor epistémico da coscuvilhice, particularmente num artigo intitulado “Gossip, or In Praise of Chaos”, no seu livro Rhetorical Spaces (1995). A Cusquice, para Code, não é apenas um passatempo, mas sim uma prática social e discursiva com implicações profundas para a produção de conhecimento. A coscuvilhice é integrada no seu projeto de pensamento ecológico, como um discurso dinâmico e contestatário que, embora marginalizado, é essencial para expor assimetrias de poder e construir uma epistemologia mais social, contextual e responsável.
  • Este é um fio cintilante tecido lateralmente por boatos e fundamentado no conhecimento ao nível do solo, no seu escandaloso caso amoroso com a coscuvilhice: o conhecimento passa a ser sentido como um campo de relações vivo e co-emergente. Opera como uma rede difusa de sensações, que metaboliza fragmentos domésticos, íntimos e afetivos em sabedoria situacional coletiva, conhecimento que brota do emaranhado, em vez de descer da torre da Razão. É intimidade em murmúrio, como o brilho de pássaros aprendendo uns com os outros em pleno voo, fala nos interstícios, testemunhando o que os canais oficiais se recusam a metabolizar. Honra o pulso irregular do conhecimento que surge em cozinhas, olhares de soslaio e sussurros acumulados. Tornamo-nos parte da história, do narrador, do risco, do desejo, do dano e da possibilidade de estar errado.
  • Saímos da lógica de inferioridade da mulher emotiva e julgadora (da competição, manipulação e inveja naturalizadas como traços femininos), ou da promessa de pureza da “culpa cristã” e mapeamos as emoções fundas em intimidade e respeito. Somos parte uns dos outros e as nossas histórias sempre se entrelaçaram.
  • Na teia do pensamento ecológico de Lorraine Code, a coscuvilhice, tão frequentemente desqualificada como tagarelice feminina, é reabilitada como uma prática de cuidado radical e insurgente, uma forma de justiça afetiva e epistémica que vibra no mesmo compasso das ecologias relacionais. Tal como num ecossistema, onde nenhuma espécie vive ou morre sozinha, a coscuvilhice é uma forma de co-sentir e co-saber que emerge de vínculos densos, de histórias partilhadas, de silêncios escutados. Não é só o que se diz, mas como se diz, com intimidade, com afeto, com responsabilidade mútua. Contra a lógica colonial que separa sujeito e objeto, natureza e cultura, razão e emoção, a coscuvilhice irrompe como um gesto de re-ligação: um fio que tece o doméstico e o político, o pessoal e o coletivo, o trivial e o sagrado. Nos feminismos do cuidado, encontramos essa mesma pulsação: o saber como cuidado partilhado, como presença que sustenta, como gesto pequeno que repara uma ferida grande. A coscuvilhice não só discurso, mas ecologia de escuta, de pertença, de responsabilização horizontal. Saber, aqui, é cuidar. E cuidar é escutar os murmúrios do mundo, mesmo (e talvez sobretudo) quando vêm da cozinha, do corredor, ou da boca das comadres. Ao honrar os vínculos, os afetos, os sussurros e os pequenos gestos, a coscuvilhice alinha-se com a própria lógica da ecologia: não como um sistema de partes independentes, mas como uma rede viva de relações em fluxo, onde o conhecimento brota do entrelaçamento, não da separação.

✦ As Aranhas?

  • Escrevi várias versões deste conto (com cozinhas e caldeirões, Comadres Cuscuvilheiras e Serpes de Cobre), para que tivesse no seu miolo o poder da intimidade e da coscuvilhice. O que ficou foi a versão com aranhas. Bem, não sei porquê, as Aranhas de novo, mas elas fazem-se presentes em sonhos e contos. Ver A Benção das Aranhas, ou A Aranha Prometida.
  • Pessoalmente, e tendo vivido em ambientes descaracterizados semi-urbanos, a coscuvilhice sempre me soou a invasão e julgamento e não a cuidado e pertença, na ilusão de liberdade de estarmos num lugar onde ninguém nos conhece. Foi em conversa com uma amiga, muito amiga, que me trouxe a dimensão deste cuidado de quem nos conhece quando partilhou comigo: “quando me mudei para uma grande cidade já não tinha as velhotas à janela que me diziam bom dia e que sabiam sempre onde eu estava.. senti-me perdida e pouco cuidada por isso”. O que na altura senti como prisão à minha “liberdade individual” abre-se como parentesco e pertença.

Ciclo de contos de Activismo Eco-Mítico

Contos da minha autoria, de trama eco-mitológicatotémica e animista, inspirado em fragmentos de contos tradicionais.

A ideia deste ciclo de contos é antiga em mim. É outra tentativa de, sem apropriação cultural de histórias que não nos pertencem, tentar transmitir conceitos, numa sintaxe popular e folclórica, que a mente moderna tem real dificuldade em habitar. Fabulando contos tradicionais contados desde outros paradigmas de parentesco e cuidado, que podem ser cultivados no húmus da nossa psique colectiva.

Estes contos foram tecidos a partir de artigos que tenho escrito ao longo dos anos, textos que trazem referências fundamentais aos conceitos e paradigmas que ancoram cada conto. E a partir de contos e lendas tradicionais, cozinhando-os com outros paradigmas.

Uma pulsante refabulação do folclore português, refutando as ontologias hierárquicas em favor de teias relacionais, desafiando as noções lineares de tempo e progresso; e reposicionando o saber como uma prática comunitária e incorporada, em vez de uma aquisição individual e abstrata. Lembramos o princípio cíclico de vida, morte e regeneração que a modernidade tentou esquecer. Este projecto faz parte da rede múltipla de experimentações do Activismo Eco-Mítico, e da rede pedagógica de (des)formações.

🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência. 

Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.