Rezos do Vento e do Barro
Edições Corpo-Lugar
Entre lume e névoa, as palavras voltam a ter corpo.
Aqui, o ego é barro que respira, o colonizado é raiz que recorda, o pensar é vento que desaprende a mandar.
Cada conto reza o mundo com a voz da terra viva, onde o humano moderno se desfaz em húmus e o mito volta a ensinar o real.
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As Aranhas Ouvideiras
Dizem os velhos do monte, mas dizem baixinho, quase como quem sopra brasas, que debaixo da terra vive uma comunidade antiga, invisível aos olhos apressados: as Aranhas Ouvideiras, tecedeiras do mundo íntimo que se sussurra.
Não são aranhas como as de cima. As Aranhas Ouvideiras têm corpos feitos de sombra húmida e fios tão finos que parecem respiração. Vivem entranhadas no húmus, entre micélio que cintila e raízes de carvalhos milenares que descem como veias. Ali, no escuro fértil, tecem não para capturar, mas para escutar. Lentamente, no tempo dos vínculos, como quem espera a couve crescer para depois fazer a sopa.
As Aranhas Ouvideiras não olham o mundo de cima. Deitam o corpo inteiro no chão do mundo. Escutam de lado, encostando o ouvido ao coração da terra. É assim que conhecem: pelo tremor do não-dito, pela vibração de um segredo, na respiração interrompida de quem sofre em silêncio. Cada fio que tecem é uma conversa íntima. Fio que passa pela cozinha onde duas mulheres cochicham enquanto a sopa ferve, pelo curral onde a cabra geme baixinho, pela sombra onde uma árvore partilha o rumor das suas folhas. E tudo isto, o trivial, o doméstico, o invisível, desce pelo solo e chega às Aranhas como sabedoria horizontal: não ordenada nem universal ou “científica”, mas viva, afetiva, arriscada.
As Aranhas Ouvideiras tecem uma rede que sabe sem ver, ao dizerem que saber não é recolher dados, e sim ser atravessada por histórias. Quando uma delas vibra o fio, todas sentem: o medo, o desejo, o erro possível, a vergonha pequena que ninguém diria em voz alta, o amor escondido que muda o rumo de uma aldeia inteira, o luto fundo que teima em co-habitar. Nada disto passaria num livro de atas ou num relatório médico, mas ali, debaixo da terra, cada fragmento é alimento. O micélio mastiga os afetos, os segredos e as partilhas, devolvendo-os mais densos e sábios. As raízes bebem e passam-no adiante. E as Aranhas tecem-no em rumor coletivo, como pássaros em revoada que mudam de direção ao sentir o ar.
Uma vez, os humanos lá de cima quiseram saber “a verdade”, limpa, clara, vertical. Desceram com pás, lanternas, máquinas de medir, queriam dados e certezas. As Aranhas esconderam-se, os fungos apagaram a luz e as raízes fecharam as bocas. Porque naquele reino subterrâneo, a verdade nunca foi estatística, foi sempre relacional. Nunca foi “o que é assim”, mas “como nos sentimos juntos”. Os homens voltaram de mãos vazias. Não entenderam que o que procuravam não vive separado da sujidade, não cresce sem a lama, não se repete fora da intimidade.
Dizem que, quando um te deitas de barriga para baixo e encostas o ouvido ao chão, a rede inteira vibra. As Aranhas aproximam-se, curiosas com a cabeça estranha que escuta como elas. E se te aquietares, sem querer dominar, sem querer saber “para ensinar depois”, as Aranhas tecem ao teu redor uma pequena teia, não para prender, mas para pertencer. Nessa teia, sentes: que saber dói, que saber envergonha, que saber é arriscar estar errada e ainda assim continuar a amar o mundo. E percebes, devagar, que conhecimento verdadeiro não se colhe, co-emerge em vínculo fundo.
“Quem quiser verdade, ponha o corpo no chão. Quem quiser saber, aprenda a ouvir de lado. Porque há conhecimentos que só nascem onde o micélio toca as raízes e as Aranhas Ouvideiras tecem as palavras que ninguém ousa dizer, lembrando que o invisível também fala e que o mundo só se sustenta porque alguém, no escuro, continua a tecê-lo.”

✦ O “pensamento horizontal” de Lorraine Code
- Lorraine Code traz o conceito de “pensamento horizontal” no contexto da sua filosofia do pensamento ecológico, dando valor epistémico significativo à cusquice, argumentando que esta pode desafiar as epistemologias dominantes.
- Lorraine Code explorou o valor epistémico da cusquice particularmente num artigo intitulado “In Praise of Gossip”, no seu livro Rhetorical Spaces (1995). A Cusquice, para Code, não é apenas um passatempo, mas sim uma prática social e discursiva com implicações profundas para a produção de conhecimento. A cusquice é integrada no seu projeto de pensamento ecológico, como um discurso dinâmico e contestatário que, embora marginalizado, é essencial para expor assimetrias de poder e construir uma epistemologia mais social, contextual e responsável.
- Este é um fio cintilante tecido lateralmente por boatos e fundamentado no conhecimento ao nível do solo, no seu escandaloso caso amoroso com a cusquice: o conhecimento passa a ser sentido como um campo de relações vivo e co-emergente. Opera como uma rede difusa de sensações, que metaboliza fragmentos domésticos, íntimos e afetivos em sabedoria situacional coletiva, conhecimento que brota do emaranhado, em vez de descer da torre da Razão. É intimidade em murmúrio, como o brilho de pássaros aprendendo uns com os outros em pleno voo, fala nos interstícios, testemunhando o que os canais oficiais se recusam a metabolizar. Honra o pulso irregular do conhecimento que surge em cozinhas, olhares de soslaio e sussurros acumulados. Tornamo-nos parte da história, do narrador, do risco, do desejo, do dano e da possibilidade de estar errado.
- Saímos da lógica de inferioridade da mulher emotiva e julgadora (da competição e inveja naturalizadas como traços femininos), ou da promessa de pureza da “culpa cristã” e mapeamos as emoções fundas em intimidade e respeito. Somos parte uns dos outros e as nossas histórias sempre se entrelaçaram.
- Na teia do pensamento ecológico de Lorraine Code, a cusquice, tão frequentemente desqualificada como tagarelice feminina, é reabilitada como uma prática de cuidado radical e insurgente, uma forma de justiça afetiva e epistémica que vibra no mesmo compasso das ecologias relacionais. Tal como num ecossistema, onde nenhuma espécie vive ou morre sozinha, a cusquice é uma forma de co-sentir e co-saber que emerge de vínculos densos, de histórias partilhadas, de silêncios escutados. Não é só o que se diz, mas como se diz, com intimidade, com afeto, com responsabilidade mútua. Contra a lógica colonial que separa sujeito e objeto, natureza e cultura, razão e emoção, a cusquice irrompe como um gesto de re-ligação: um fio que tece o doméstico e o político, o pessoal e o coletivo, o trivial e o sagrado. Nos feminismos do cuidado, encontramos essa mesma pulsação: o saber como cuidado partilhado, como presença que sustenta, como gesto pequeno que repara uma ferida grande. A cusquice não só discurso, mas ecologia de escuta, de pertença, de responsabilização horizontal. Saber, aqui, é cuidar. E cuidar é escutar os murmúrios do mundo, mesmo (e talvez sobretudo) quando vêm da cozinha, do corredor, ou da boca das comadres. Ao honrar os vínculos, os afetos, os sussurros e os pequenos gestos, a cusquice alinha-se com a própria lógica da ecologia: não como um sistema de partes independentes, mas como uma rede viva de relações em fluxo, onde o conhecimento brota do entrelaçamento, não da separação.
✦ As Aranhas?
- Escrevi várias versões deste conto (com cozinhas e caldeirões, Comadres Cuscas e Serpes de Cobre), para que tivesse no seu miolo o poder da intimidade e da cusquice. O que ficou foi a versão com aranhas. Bem, não sei porquê, as Aranhas de novo, mas elas fazem-se presentes em sonhos e contos. Ver A Benção das Aranhas, ou A Aranha Prometida.
- Pessoalmente, e tendo vivido em ambientes descaracterizados semi-urbanos, a cusquice sempre me soou a invasão e julgamento e não a cuidado e pertença, na ilusão de liberdade de estarmos num lugar onde ninguém nos conhece. Foi em conversa com uma amiga, muito amiga que me trouxe a dimensão deste cuidado de quem nos conhece quando partilhou comigo: “quando me mudei para uma grande cidade já não tinha as velhotas à janela que me diziam bom dia e que sabiam sempre onde eu estava.. senti-me perdida e pouco cuidada por isso”. O que na altura senti como prisão à minha “liberdade individual” abre-se como parentesco e pertença.
Ciclo de contos de Activismo Eco-Mítico
Contos da minha autoria, de trama eco-mitológica, totémica e animista, inspirado em fragmentos de contos tradicionais.
A ideia deste ciclo de contos é antiga em mim. É outra tentativa de, sem apropriação cultural de histórias que não nos pertencem, tentar transmitir conceitos, numa sintaxe popular e folclórica, que a mente moderna tem real dificuldade em habitar. Fabulando contos tradicionais contados desde outros paradigmas de parentesco e cuidado, que podem ser cultivados no húmus da nossa psique colectiva.
Estes contos foram tecidos a partir de artigos que tenho escrito ao longo dos anos, textos que trazem referências fundamentais aos conceitos e paradigmas que ancoram cada conto. E a partir de contos e lendas tradicionais, cozinhando-os com outros paradigmas.
Uma pulsante refabulação do folclore português, refutando as ontologias hierárquicas em favor de teias relacionais, desafiando as noções lineares de tempo e progresso; e reposicionando o saber como uma prática comunitária e incorporada, em vez de uma aquisição individual e abstrata. Lembramos o princípio cíclico de vida, morte e regeneração que a modernidade tentou esquecer. Este projecto faz parte da rede múltipla de experimentações do Activismo Eco-Mítico, e da rede pedagógica de (des)formações.
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