A Benção das Aranhas

{tecelagem profética colectiva}

A jovem mulher navega por um rio sinuoso e apertado, num fluxo intemporal. A floresta tropical que circunda a água corrente é densa e ela não consegue ver muito para além das margens. De pé, numa canoa, segue rio acima, remando com força. Há um desvio quase impercetível para um afluente mais pequeno; com agilidade, manobra a canoa, seguindo por aí. Uns metros mais adiante encontra-se num lago recôndito alimentado por uma enorme cascata ao fundo. A água abundante troveja caindo lá do alto.

Ela aproxima-se perigosamente da cascata, arriscando ser esmagada pela água que cai pesadamente do precipício rochoso. Mergulha rapidamente enquanto a canoa se desfaz pela força da água ribombante. A mulher nada até uma fissura na rocha à esquerda da queda de água. Esgueira-se pela apertada passagem rochosa e, lá dentro, encontra uma câmara secreta, húmida, alta e apertada. Encontra-se agora atrás da catarata, sentindo a potência da água que corre com o rumorejar contínuo pelas paredes de pedra.

Este é um templo milenar alimentado pelos salpicos da água e tecido por Aranhas profetas. É como o fundo de um longo poço e, uma dúzia, ou talvez uma centena, de Aranhas grandes tecem teias entrelaçadas. Fios de seda entrecruzados filtram pacientemente as gotas perdidas que escorrem pelo túnel pedregoso. As Aranhas anciãs urdem matrizes e padrões arcanos ao longo das eras, pacientemente tricotando e articulando possibilidades, encandeando revelações. As gotas de água filtrada caem pelas teias entrelaçadas de mil fios vivos, até ao chão rochoso, formando uma pequena poça tão transparente no centro, como lamacenta nas margens.

Esta é água sagrada, cada gota demora um milénio a escorrer até aqui. Uma água profética, inoculada pelo veneno das Aranhas centenárias e alquimizada pelas suas teias tecidas em conjunto. Cada fio uma história, cada nó uma possibilidade, cada laçada uma nova trama. As múltiplas teias, tecidas e sonhadas, emanam ritmicamente canções primordiais. As Aranhas abençoam a jovem mulher e sussurram-lhe nas suas vozes antigas e silenciosas “fará com que transformes”. Ela não sabe em quê ou porquê, ou quando, mas também sabe que as Aranhas não lhe responderão a tão prosaicas interrogações, pois o seu trabalho já está concluído. Com o seu corpo franzino, agacha-se no espaço apertado e lambe a água profética da poça.

 

Acordei.
{sonho, maio 2022; porque nunca se sonha sozinho e os sonhos não são apenas nossos, ofereço este sonho a quem leia, tal como me for oferecido.}

🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência. 

Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.