O Santuário – Ensaios sobre Eco-Mitologia

Prefácio de Ana Alpande

Edições Mahatma

Activismo Eco-Mítico

{Activismo literário, afectivo e de percepção}

Na sua definição oficial, activismo é o contrário de passividade, implicando acção, movimento, militâncias e atitudes activamente participativas. Dizem os dicionários online, que também carrega a tendência para a actos violentos ou extremistas. A própria origem da palavra activismo diz ser algo “dado à atividade mundana” (oposto a contemplativo ou monástico), directamente do latim activus, de actus ‘um fazer’ (da raiz ‘conduzir, puxar para fora ou para a frente, mover’). Quando penso em activismo, formam-se imagens dos tão essenciais e necessários protestos da linha da frente, em manifestações e demonstrações públicas, e muitas vezes massivas. Reivindicações contundentes de injustiças, opressões e desigualdades.

Manifestações e testemunhos de preocupações e realidades que apontam o dedo a tiranias, políticas violentas, injustiça cega e monopólios, assim como escancaram as inevitáveis consequências para todos nós. São valiosíssimas acções colectivas e de protesto, de “ir para a rua.”

No meu livro O Santuário escrevi: “(este livro é uma) forma de activismo literário, uma possibilidade de activamente contrastar a limitada e superficial percepção moderna — desde o início que temos vindo a abrir espaço nas idealizações monolíticas e puristas da mente contemporânea resgatando a psique eco-mitológica.” Na verdade, escrevi este livro desde uma lente de activismo interseccional, afectivo e eco-mítico, como uma declaração e protesto, um testemunho em vulnerabilidade, que provoca, anima, instiga, encoraja e desafia a confortável e suposta normalidade da visão do mundo historicamente erguida.

Toda a investigação e escrita foi um acto intencional que perfura as nossas membranas de negação, em carinho e humildade.

A demonstração de injustiças fundas que constantemente nos desumanizam, desnaturalizando-nos em supostas verdades essenciais, universais e estáveis, faz-nos entrar em confronto connosco próprios. Emoções intensas podem surgir, estridentes e perfurantes, como guinchos de rejeição, raiva e recusa pelos lugares internos que aparentemente nos retiram o tapete da identidade, desembaraçando questões difíceis que nos confrontam de alguma forma.

Com o Activismo Eco-Mítico intencionalmente reimaginamos os contos e mitos do passado, — reconhecendo e assumindo os dogmas insidiosos aí plantados, os que constante e violentamente nos limitam e exilam de relações de parentesco e pertença mais vastas. E se, a consequência for reimaginar o futuro?

Pós-activismo

Para escrever sob a lente de activismo afectivo e eco-mítico ancorei-me no conceito de pós-activismo desenvolvido por Báyò Akómoláfé. É um caminho orgânico e fractal que trilho ao longo do livro. Assumo que o pós-activismo não deve ser enquadrado ou contido, por pertencer às raízes, sendo sempre contextual e em metamorfose. Por vezes invisível, outras vezes esmagadoramente ensurdecedor. O pós-activismo está no centro das periferias e, para além do luto e desapontamento, faz parte do desdobramento imanente. Como um ancião ou um antepassado, murmura ao nosso ouvido: “Já perdemos mundos antes,” enquanto nos acorda a meio da noite enviando-nos numa jornada de iniciação.

Pós-activismo é o verbo para fazer as coisas de forma diferente, um cesto ritual onde estão guardadas as partes esquecidas da psique, do corpo e da Terra. 

Gesto Menor

Adiciono também o valioso e ressonante conceito de Gesto Menor da filósofa e artista canadiana Erin Manning. Manning define o gesto menor da seguinte forma: “a força gestual que abre a experiência à sua variação potencial, movendo-se do interior da própria experiência, activando uma mudança de tom, uma diferença de qualidade.” Segundo ela, “o menor é uma força que atravessa o maior, desmobilizando a sua integridade estrutural, problematizando os seus padrões normativos,” sendo “maior” as estruturas culturais, sociais e institucionais de “como as coisas são.” O “menor,” “uma variação contínua da experiência,” que se movimenta em ritmos orgânicos e permeáveis pelas fissuras dos dogmas ossificados da norma aceite. Mesmo a norma aceite de como protestar, mesmo quando a resposta à crise revela o mesmo modo de pensar que criou a crise.

O afecto e os mitos no activismo introvertido

Como introvertida que sou, encontrei voz nesta forma de activismo, que se desdobra sob os interstícios da cognição e percepção normativa. Isto é, relevando outras formas de relacionar, devocionar e entrelaçar com o vasto território humano como não-humano. É literário porque, através da investigação-oração, na experiência de corpo-no-lugar, escrevo contos, re-fabulados a partir de contos tradicionais e mitos ancestrais, vislumbres e fragmentos de outras formas de ser humano.

Formas mamíferas, nativas e animistas de simbiose ecológica, formas que recuperam a nossa sabedoria relacional.

Sendo o activismo normativo a acção directa, surge a questão da prática. Ficamos à espera que a prática, nos dê as respostas ou soluções, que demonstre as opressões inegáveis, ou pelo menos liberte alguma tensão da frustração, luto e desilusão de um mundo tão desigual à beira de tantos colapsos.

Mas só a prática não nos muda os quadros de referência, não nos faz ver as lentes por onde vemos o mundo e não desfaz as perversas molduras da normalidade, incluindo o modelo aceite de como protestar e resistir.

Além do mais, o Activismo Eco-Mítico não se coloca como uma escolha entre acção/passividade, mas como um complemento fértil e nutritivo, um colo regenerativo da exaustão das lutas colectivas e interseccionais que trilhamos.

Como refiro n’O Santuário: O (pós)activismo literário e de percepção não nega a importância ou necessidade do activismo ecológico, político e social da frente de intervenção, em manifestações e acções directas. O (pós)activismo literário e de percepção é uma prática fecunda, das entranhas da Vida, que assume a importância de englobar a subjectividade das teias de pensamento, trazendo a imaginação, o arracional e a arte como linguagens fundamentais na possibilidade de mudança de percepção cultural.” Este é um convite paradoxal que segue tanto as linhas da ciência como as tramas míticas.

Assumimos que os colapsos e violências não são apenas sobre nós, individual ou antropocentricamente, mas sobre as possibilidades do ressurgimento e desdobramento da Vida, ancorando uma responsabilidade poética e profunda, que não nega as múltiplas crises. Convergimos para recuperação de relações íntimas de afecto na relação com o mundo. Reivindicamos que a amnésia, e a tentativa de extinção do pensamento mítico, infertiliza a psique e a Alma, linearizando e abstraindo a Vida ocidental moderna.

Este é um activismo lento, um labor de cuidar e de cuidado, de devoção e atenção, que nos permite encontrar as matrizes culturais que evitam ou que nos alienam da participação e o encontro com o mundo. Ancorando a raiva sagrada, fissuramos a normopatia, fabulando outras histórias, aqui mesmo, nos pequenos nadas do dia-a-dia.

Que possamos encontrar espaço de rendição e digestão, lentamente laborando, vagarosamente transformando. Mas, igualmente, onde os vários mitos e contos, registados a partir de outras cosmo-visões, nos possam revolver, acendendo centelhas de ardor, resistência, revolução e vontade de transformar. Porque aqui, nas ruínas do Santuário à beira do abismo, rendemo-nos a confessar a alienação fragmentada em que vivemos.

Que os mitos e a fabulação especulativa nos assistam na recuperação da nossa sabedoria inata do mistério, complexidade e paradoxo. Que nos ajudem a ficar com o problema (Haraway).

Que possamos encontrar um chão fértil, gentil e simbiótico, ancorador e regenerador. Que mergulhemos em águas envolventes e sagradas. Brotando na possibilidade de intimidade recíproca com o mundo. Resgatemos a sabedoria afectiva e mítica que nos faz agir de forma responsável. Cultivando activamente lugares de transgressão e dissidência cognitiva, onde experiências e conceitos podem co-existir na micro-política do luto e do encantamento, tanto da criação como da extinção. Imaginamos e nutrimos sonhos que arquivam ideias limítrofes, ‘habitats’ vivos de narrativas alternativas e de resistência que nos enriquecem colectivamente.

No convite alquímico do Activismo Eco-Mítico mudamos de pele uma e outra vez, enraizados e em fluxo, porque não há uma só forma de protesto. Firmamos as convulsões da revolução, entre o amor, a raiva e o luto. Reverenciamos o chão que nos acolhe e ampara. Somos afectados, não desviando o olhar, no meio de tanta violência, luto e paradoxos, mas também de muita beleza, ternura e carinho.

Ciclo de Contos de Activismo Eco-Mítico

{receita de fermentação de contos}

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  1. Para este ciclo são estudados contos tradicionais portugueses e mitos de várias proveniências e versões, tal como já fora feito através do processo vivo da investigação-oração, para os livros dos Contos e Santuário, tal como Orada e Siduri.
  2. Os contos, que se escolhem para o processo, são deixados a fermentar para que lentamente se alquimizem com o território, o corpo e a imaginação. Os símbolos, metáforas e sonhos nutrem os fragmentos de relações erodidas, cerzindo pontes afectivas, contextualizadas no lugar.
  3. Apesar da preparação e investigação dos ingredientes e tramas simbólicas de cada conto, o acto intencional de remembrar estes contos segue as linhas da fabulação especulativa, pretendendo deslaçar criativamente os nós de crenças recentes. Criando um espaço responsável e maduro para aceder a sedimento mais fundoseste não é um projecto de arquivo de contos tradicionais, mas de criativamente urdi-los a partir do paradigma eco-mitológico.
  4. Em fogo lento decompõem-se as estruturas normativas nos contos amassadas, tais como: a superioridade e controle humano em relação a tudo o resto (antropocentrismo), o racismo inerente às personagens escravizadas (colonialidade), a imaturidade, maldade e incapacidade feminina (patriarcado) ou a negligência da sabedoria sazonal e ecológica, assim como um deus abstracto nos céus (dessacralização do lugar que gera iliteracia ecológica e ecocídio).
  5. Os contos são criticamente laborados com fios fecundos e animistas. Com pitadas de inspiração, que podem vir qualquer lugar, o conto começa a tomar novos contornos, que pulsam das memórias colectivas: ritos e cerimónias abrem-se, tal como estruturas de tempo cíclico, assim como a real e totémica aprendizagem com os animais em vez de redutoramente os desencantar. As mulheres recuperam soberania, maturidade e dignidade. Os lugares deixam de ser cenário inerte.
  6. Dentro desta prática, a ficção fecunda a realidade com possibilidades híbridas e quiméricas, viabilizando narrativas alternativas. Os contos recuperam parte da sua dignidade, sacralidade e sabedoria cartográfica de espaço e tempo.
  7. As novas versões dos contos deixam de estar exiladas ao nexus da psique humana, individual e abstracta, abrindo-se aos arquétipos da ecologia diversa, colectiva, situada e viva.
  8. Os contos estão agora prontos a dançar com a memória funda, a sabedoria das relações ecológicas, remembrando quem sempre fomos! Desafiando as limitações cognitivas da modernidade, despertando outros recursos e diferentes maneiras de ver e sentir.
  9. Servir com chá e acolher com abraços.

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