Rezos do Vento e do Barro

Edições Corpo-Lugar

 

Entre lume e névoa, as palavras voltam a ter corpo.
Aqui, o ego é barro que respira, o colonizado é raiz que recorda, o pensar é vento que desaprende a mandar.
Cada conto reza o mundo com a voz da terra viva, onde o humano moderno se desfaz em húmus e o mito volta a ensinar o real.

TEMPO DE LEITURA – 2 MINUTOS

A Mulher que se Esqueceu de Voar

 

Pois então, cheguem-se aqui, que esta é daquelas histórias que se contam nas noites em que o vento muda de rumo e o chão cheira a penas molhadas. Reza o povo que, há muito tempo, desciam do nevoeiro umas mulheres de olhos fundos e ombros de luz, as Senhoras das Penas. Tinham o dom de atravessar os mundos, ora pássaro, ora mulher, ora vento.

Diz-se que, quando batiam as asas, o tempo mudava de estação, as sementes despertavam e os rios lembravam o caminho do mar.

Mas um dia, um homem curioso, desses que confundem amor com posse, escondeu o manto de penas de uma delas. “Assim ela há-de ficar comigo”, disse. E ficou. Mas ao perder o manto, ela perdeu também o seu compasso, esqueceu o voo, esqueceu o ciclo, esqueceu até a língua das águas. Passou a viver no compasso dos sinos e do relógio da vila, o tempo dos homens, redondo e preso.

Chamavam-lhe depois a Mulher da Janela, porque passava os dias a olhar o céu como quem espera por um eco. O povo achava-a triste, mas ela estava era esquecida. Havia dentro dela um rumor de asas por nascer. À noite, sonhava com rebanhos de nuvens e rios que voavam para dentro do horizonte. Ao acordar, olhava as mãos, lisas, sem penas, sem brilho.

Uma velha curandeira, dessas que ainda sabiam falar com corvos, bateu-lhe à porta um dia e disse: “O teu manto não foi roubado, foi esquecido. E o que se esquece, o corpo guarda à espera do tempo certo.”

Levou-na então para o alto do monte, onde o vento uiva e o céu parece chão. Ali, a velha ensinou-lhe o Ritual do Relembrar as Asas:

  • Junta penas caídas, uma de cada bicho que não se caça.
  • Unta-as com mel e cinza e sopra-lhes o teu nome.
  • Depois, diz baixinho: “Não quero o céu por dono, só o vento por parente.”

A mulher chorou e as lágrimas misturaram-se ao pó. E quando o vento soprou de sul, o corpo dela começou a cheirar a ninho quente e a madrugada.

Dizem que nessa noite o céu se abriu em círculos e dela nasceram andorinhas, corujas e milhafres. Cada ave levava no peito uma pena do seu antigo manto e o mundo voltou a girar como antes, em espiral, e não em linha.

As Senhoras das Penas regressaram nas estações certas: no tempo da semente, traziam chuva; no tempo da colheita, traziam sombra; no tempo da morte, traziam canto e oração.

E a Mulher da Janela desapareceu com elas, voando baixo, rente à terra, como quem volta ao próprio nome. Dizem as velhas que, quando o coração se sente preso ao chão, há que fazer a mezinha das penas:

  • Pega numa pena que o vento te ofereça — não peças, espera.
  • Unta-a com azeite e sal grosso.
  • Passa-a pela testa e diz: “Que me lembre o corpo do que a alma esqueceu.”

Depois, deixa a pena à beira do rio, para que a corrente a leve ao céu.

Porque, como dizem as velhas da serra, piscando o olho ao fogo: “Roubar o manto é fácil. Mas quem já nasceu ave… mais cedo ou mais tarde, volta a voar.”

(*) Este conto NÃO está no livro Rezos do Vento e do Barro, mas faz parte do mesmo projecto/ciclo.

 

Referências

✦ Mitologia & Contos Eco-Míticos

  • Contos das Mulheres-Pássaro / Pássaro-Noiva: coletados no documento “Contos – As Sete Irmãs” (docx), elaborado por mim para a (des)formação de Eco-Mitologia, incluindo versões da mulher cisne, da mulher corvo e dos mitos da mulher que perde ou recupera o manto de penas. Essas histórias informam a análise simbólica do manto como marcador de migração e soberania cíclica.
  • Histórias de noiva-animal (ex: cisnes, corujas, grous): baseadas em mitologias de diversas tradições — europeias, siberianas, ameríndias e asiáticas — abordadas no documento “Deusas Pássaro e a eco-mitologia das migrações”, um conjunto de textos meus e de referências sobre este tema.
  • Mitologia das Plêiades: a sua ligação com o calendário agrícola, com o ciclo das águas e com o feminino cósmico, mencionada nos meus textos e enraizada em cosmologias grega, maia, celta e yorubá.

✦ Ecologia, Calendários e Feminino Sazonal

  • Relações entre migrações de aves e ciclos agrícolas: observações contextuais das minhas investigações, nomeadamente sobre os fluxos de aves coincidindo com períodos de plantio, colheita ou preparação ritual (como a chegada das andorinhas à Península Ibérica).
  • Calendários lunares e aquáticos: presentes em várias culturas agrárias matriarcais e cosmologias baseadas na observação do céu e das águas — abordadas nos contos das Sete Irmãs como “Mulheres do Tempo”, “Senhoras das Estações” e guardiãs dos ritmos cíclicos.

✦ Bibliografia

 

Ciclo de contos de Activismo Eco-Mítico

Contos da minha autoria, de trama eco-mitológicatotémica e animista, inspirado em fragmentos de contos tradicionais.

A ideia deste ciclo de contos é antiga em mim. É outra tentativa de, sem apropriação cultural de histórias que não nos pertencem, tentar transmitir conceitos que a mente moderna tem real dificuldade em habitar, numa sintaxe popular e folclórica. Fabulando contos tradicionais contados desde outros paradigmas de parentesco e cuidado, que podem ser cultivados no húmus da nossa psique colectiva.

Estes contos foram tecidos a partir de artigos que tenho escrito ao longo dos anos, textos que trazem referências fundamentais aos conceitos e paradigmas que ancoram cada conto.

Uma pulsante refabulação do folclore português, refutando as ontologias hierárquicas em favor de teias relacionais, desafiando as noções lineares de tempo e progresso, e reposicionando o saber como uma prática comunitária e incorporada, em vez de uma aquisição individual e abstrata. Lembramos o princípio cíclico de vida, morte e regeneração que a modernidade tentou esquecer. Este projecto faz parte da rede múltipla de experimentações do Activismo Eco-Mítico, e da rede pedagógica de (des)formações.

🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência. 

Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.