Rezos do Vento e do Barro

Edições Corpo-Lugar

 

Entre lume e névoa, as palavras voltam a ter corpo.
Aqui, o ego é barro que respira, o colonizado é raiz que recorda, o pensar é vento que desaprende a mandar.
Cada conto reza o mundo com a voz da terra viva, onde o humano moderno se desfaz em húmus e o mito volta a ensinar o real.

TEMPO DE LEITURA – 2 MINUTOS

O Julgamento dos Vivos e dos Mortos

ou “O Lobo que Ensinou a Rezar”

Pois então, que se acenda o lume e se cale o mundo, porque esta história vem de longe, dos tempos em que o homem e o bicho ainda rezavam juntos. Dizem os velhos do Gerês que há histórias que não se contam, acontecem de cada vez que alguém acende o lume. Esta é uma delas.

Foi numa noite de lua baça, quando a serra respirava fundo e o vento se lembrava de nomes antigos. Um grupo de caminhantes, não homens de caça, nem homens de fé, mas peregrinos do entre-mundo, de uma devoção antiga, subia pela mata em silêncio.
Não iam procurar nada, iam ser procurados.
No meio da clareira encontraram um lobo morto, corpo ainda quente, estendido como quem dorme entre mundos, com a língua caída e o olhar virado para dentro do tempo. O mais velho ajoelhou-se e disse:

“Não o toquem.
Antes de cada carne há um espírito,
e antes do espírito há o dever de escutar.”

O rapaz de olhar limpo e passos de rio, aquele que ainda ouvia o chão, ajoelhou-se, pousou a mão sobre o pelo e murmurou:

“Irmão de pêlo e dente, o pior dia da tua vida foi o da tua morte. Que a terra te coma com a mesma ternura com que tu comias o medo dos homens.”

Foi então que o Lobo abriu um olho só, um olho de luar, sem sangue nem raiva, apenas vigília. Do fundo do bosque veio o Velho do Carvalho, o guardião dos pactos esquecidos entre feras e homens. Tinha os ombros cobertos de líquenes e o olhar de quem já viu o tempo crescer e apodrecer muitas vezes. Dizem que falava a língua dos animais e que o cheiro da resina o anunciava antes de chegar. O velho ouviu os versos e murmurou:

“Quem canta para possuir, seca a própria voz.
Quem canta para honrar, devolve à Terra o que lhe deve.”

Tirou do bolso um punhado de sal, lançou-o sobre o corpo do lobo e rezou palavras que só o vento recorda. O Lobo ergueu-se então, não vivo, nem morto, feito de fumo e luar. E falou com voz de caverna e de ventre:

“Não vim pedir justiça,
vim lembrar-vos dos pactos.
Fui caçador e fui caça,
como vós haveis de ser.
A minha pele é fronteira, o meu dente é prece.
Quem a veste, não domina, atravessa.”

O velho inclinou-se e ensinou-lhes o rito dos antigos, aquele que unia as tribos lupinas e humanas em reciprocidade:

“Quando encontrares um corpo caído,
acende uma vela de sebo e põe sal nos seus olhos.
Diz três vezes:
‘Vai e volta ao pó que te gerou,
porque tudo o que come será comido.’
Depois agradece.
Porque a morte é também alimento e o alimento é sempre comunhão.”

Os peregrinos compreenderam. Dizem que o mais novo se tornou guardador de rios e que nas suas margens ensinava as crianças a rezar ao vento. E contam ainda que, nas noites de geada, se ouve entre os montes um uivo que não assusta, abençoa e desperta, lembrando aos vivos que só há continuidade quando há reverência. É o Lobo antigo, o Totémico, o que liga os vivos aos mortos, o que lembra à carne o caminho da alma. E é por isso, dizem as velhas à lareira, que quem encontra um bicho morto deve parar e inclinar a cabeça. Porque pode não ser só um corpo, mas o eco de um culto antigo, onde ferida e fertilidade, humano e animal, vida e morte se entrelaçam para manter o mundo de pé. Porque o morto não é ausência, é boca da terra.

“Quem fala bem do Lobo, o vento protege.
Quem o esquece, o vento leva.”

(*) Este conto NÃO está no livro Rezos do Vento e do Barro, mas faz parte do mesmo projecto/ciclo.

 

Referências

✦ E se os caminhantes fossem peregrinos em devoção pela paisagem?

  • Conto elaborado a partir do conto tipo 1626*A (Cardigos) A Melhor Rima sobre um Lobo Morto, de ampla difusão penínsular. Nele, alguns caçadores (caminhantes, estudantes, etc.) encontram um lobo morto e concordam que a presa será para quem recitar os versos mais apropriados. Às vezes, ganha quem reconhece que o pior dia do animal foi o da sua morte, mas, em outras ocasiões, eles devem recorrer a um quarto personagem que atua como juiz para decidir a questão; este pode comportar-se justamente ou aproveitar-se da situação para obter a sua parte do ganho.
  • E se este conto for eco antigo de cultos de dignificação da morte e do Lobo? Do poder totémico do seu corpo-legado, na pele e presas; da potência de usar as suas peles entre mundos. E se a melhor rima, o melhor canto, não for competição de dominar e aproveitar o corpo do Lobo, mas memória de devoção e sacralização do Lobo e dos seus ensinamentos? Se este conto peninsular for eco de ritos iniciáticos do fundo dos tempos, cerimónias de entrelaçamento e reciprocidade entre as comunidades Lupinas e Humanas?

    ✦ Bibliografia

     

    Ciclo de contos de Activismo Eco-Mítico

    Contos da minha autoria, de trama eco-mitológicatotémica e animista, inspirado em fragmentos de contos tradicionais.

    A ideia deste ciclo de contos é antiga em mim. É outra tentativa de, sem apropriação cultural de histórias que não nos pertencem, tentar transmitir conceitos que a mente moderna tem real dificuldade em habitar, numa sintaxe popular e folclórica. Fabulando contos tradicionais contados desde outros paradigmas de parentesco e cuidado, que podem ser cultivados no húmus da nossa psique colectiva.

    Estes contos foram tecidos a partir de artigos que tenho escrito ao longo dos anos, textos que trazem referências fundamentais aos conceitos e paradigmas que ancoram cada conto.

    Uma pulsante refabulação do folclore português, refutando as ontologias hierárquicas em favor de teias relacionais, desafiando as noções lineares de tempo e progresso, e reposicionando o saber como uma prática comunitária e incorporada, em vez de uma aquisição individual e abstrata. Lembramos o princípio cíclico de vida, morte e regeneração que a modernidade tentou esquecer. Este projecto faz parte da rede múltipla de experimentações do Activismo Eco-Mítico, e da rede pedagógica de (des)formações.

    🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência. 

    Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.