Rezos do Vento e do Barro

Edições Corpo-Lugar

 

Entre lume e névoa, as palavras voltam a ter corpo.
Aqui, o ego é barro que respira, o colonizado é raiz que recorda, o pensar é vento que desaprende a mandar.
Cada conto reza o mundo com a voz da terra viva, onde o humano moderno se desfaz em húmus e o mito volta a ensinar o real.

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Martinho que Acendeu o Coração da Terra

 

Reza o povo que Martinho não fez milagre, fez lembrança.
Era soldado cansado de guerra e frio, quando encontrou, na beira da estrada, um mendigo que era o próprio Inverno disfarçado.
Rasgou a capa ao meio, não por piedade, mas porque sentiu, no corpo, o apelo do vínculo. E o mundo estremeceu e a Terra suspirou de alívio. O tecido rasgado fez um som de trovão ao contrário e o frio recuou um pouco, como fera que reconhece o abraço. E nesse instante, o vento soprou mais quente, o céu abriu-se num clarão dourado e o mundo respirou.

Mas o que aconteceu não foi prodígio nem milagre, foi reciprocidade, oferenda e devoção. O coração da terra aqueceu em reconhecimento. Ao dar metade do que o cobria, Martinho devolveu à Terra o gesto antigo da partilha, aquele que mantém o calor vivo nas coisas.

E é assim que se conta, que o milagre de São Martinho não foi assombro, mas lembrança de parentesco, mesmo com o irmão inverno. O sol voltou e o homem lembrou-se de ser poroso. Porque, como dizem as velhas, com as mãos cheias de castanhas e as malgas cheias de água-pé, quando chega Novembro e o frio se ajeita no corpo, acende-se o lume e prova-se o vinho novo, dizendo baixinho:

“Que o calor circule,
que o frio ensine,
e que o coração da Terra nunca deixe de bater dentro do nosso.”

✦ E se S. Martinho guardar o rito de devolução à terra?

  • E se este conto for eco fundo de cerimónias, cantos e contos de devoção ao lugar e as suas estações? E se for eco da partilha e reciprocidade para preparar a passagem do inverno, ancorando a lembrança que o calor é sempre partilhado? E se esta história for um mapa de tempo cíclico para recordar e comungar da mutualidade e colectivo a cada inverno? Um rito de intenção para que todos tenham colo, abraço e lume?
  • Apesar do dia 11 de Novembro ser uma festa litúrgica que celebra S. Martinho (Nascido na Hungria por volta do ano 316, São Martinho de Tours foi um soldado romano que, após receber o batismo e renunciar a milícia, fundou um mosteiro em Ligugé, onde seguiu a vida monástica), como personagem e guerreiro histórico, temos uma pista mais antiga no nome. Etimologicamente, o nome Martim origina-se do latim Mārtīnus, derivado de Mārs, o deus romano da guerra, denotando “pertencente a Marte” ou “guerreiro”
  • José Leite de Vasconcelos afirmou que o magusto representa um sacrifício em honra dos mortos, explicando que em tempos, nalguns locais, era tradição acender as fogueiras e preparar, à meia-noite, uma mesa com castanhas para os mortos da família irem comer.
  • Além disso, o período sazonal em que o Dia de S. Martinho (11 de novembro) existe em relação aos períodos simétricos do calendário: Os períodos situados entre 1 e 11 de Novembro (e 1 e 10 de Maio) são representados como fases de “Verão no Inverno” e de “Inverno no Verão”, respetivamente.
  • A época de 1 a 11 de Novembro e de 1 a 10 de Maio é descrita como sendo idealmente situada na transição entre estações, na dança entre fertilidade e os mortos. O período de 1 a 11 de Novembro segue-se à Festa dos Mártires (1 de Novembro), que tinha uma festa análoga a 13 de Maio, já estabelecida no século VIII (segundo Francisco Vaz Silva). Ora Mártir, uns dizem que vem de Marte (como Martim) e outros do grego Martus, que significa testemunha. O que se sacrifica, mantendo as suas crenças perante a opressão.
  • Já Santa Martinha é quem nos protege da geada diz o povo (segundo Aurélio Lopes).

Ciclo de contos de Activismo Eco-Mítico

Contos da minha autoria, de trama eco-mitológicatotémica e animista, inspirado em fragmentos de contos tradicionais.

A ideia deste ciclo de contos é antiga em mim. É outra tentativa de, sem apropriação cultural de histórias que não nos pertencem, tentar transmitir conceitos, numa sintaxe popular e folclórica, que a mente moderna tem real dificuldade em habitar. Fabulando contos tradicionais contados desde outros paradigmas de parentesco e cuidado, que podem ser cultivados no húmus da nossa psique colectiva.

Estes contos foram tecidos a partir de artigos que tenho escrito ao longo dos anos, textos que trazem referências fundamentais aos conceitos e paradigmas que ancoram cada conto. E a partir de contos e lendas tradicionais, cozinhando-os com outros paradigmas.

Uma pulsante refabulação do folclore português, refutando as ontologias hierárquicas em favor de teias relacionais, desafiando as noções lineares de tempo e progresso; e reposicionando o saber como uma prática comunitária e incorporada, em vez de uma aquisição individual e abstrata. Lembramos o princípio cíclico de vida, morte e regeneração que a modernidade tentou esquecer. Este projecto faz parte da rede múltipla de experimentações do Activismo Eco-Mítico, e da rede pedagógica de (des)formações.

🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência. 

Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.