Canções de Amassar

Tinha as mãos frias de brincar com a água gelada do rio. De cócoras, da margem chapinhava, tentava encontrar peixes e rãs, nas águas transparentes da corrente suave. Atrás de mim as árvores dançavam ao vento e ouvia ao longe as conversas das famílias à volta do fogo. As cerimónias estavam prestes a começar quando voltei à aldeia. Conversas, risos, canções e abraços. O ar cheirava a fumo e a comida a ser preparada e cozinhada, por muitas mãos que cortavam, amassaram e cuidavam do fogo.

A Das Histórias estava ali, de olhos brilhantes e fundos, sentada do outro lado das brasas. O meu corpo pequeno aninhou-se ao seu lado a ouvir o seu lento coração, sem pressa e, ao mesmo tempo, ansiosa por escutar o que contava, soprado pela voz antiga e a pele fina e enrugada. Além das histórias, também me ensinou a amassar, a moer os grãos, misturar os ingredientes e a sovar a massa, para que ficasse macia. Ensinou-me o jeito dos pulsos, o ritmo e movimento que dança com a massa levedante. Enquanto amassava, A Das Histórias cantava para a massa, “um dia também descobrirás as canções que tecem o pão, nunca se amassa apenas com as mãos,” dizia-me. “Vais reconhecê-las na água do rio e nas folhas das árvores ao vento.” 

Perdi-a logo a seguir, deixou-me sozinha e sem canções da massa e do pão. Só me lembro de pó, vista enevoada e garganta arranhada. Sem voz. Desfiz-me, quando a perdi. As mãos cresceram, mas as canções não vieram, o rio secou e as árvores queimaram. Silêncio. O corpo e o lugar extinguiram-se. Mas sonhava com ela e os braços lembravam-se das voltas da massa, os pulsos recordavam o ritmo de força e delicadeza. Roda na base da mão, empurra e larga. Recolhe e repete.

Por conta da poeira mudámos para longe, para um território onde os rios e as árvores ainda cantavam. Os corações ferozes bravamente escutam. Lentamente refiz-me, moldava-me a mim e à massa. Cuidava das gentes e do lugar. Comecei a escutar as canções de metamorfose, trovas que levedam, cânticos que fermentam, melodias que nos ancoram na mudança de forma. Vozes humanas entrelaçadas com vozes de vento e rio, de árvore e corvo, de lobo e montanha.

Assim se amassa a vida, em puxões que tanto juntam como separam. Com força e delicadeza, abraçando e libertando.

🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência. 

Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.