A Noiva da Noite
No ritual de solstício, no escuro mais longo, apenas iluminado pelas estrelas que viajam pelo céu, o ritmo de três era cumprido. Três fases, três etapas, três corpos. Nascimento, Vida, Morte. Três mulheres cegas velavam a jovem, para que o Grande Corvo a abençoasse. Este é o culto de inícios, meios e fins. Três caminhos, três possibilidades e três tempos. A jovem mulher sentiu um arrepio quando as penas do Grande Corvo roçam na sua pele, enquanto as Sacerdotisas Cegas murmuram encantamentos pela noite longa.
Tum. Tum. Tum.
Os olhos estelares e fundos do Grande Corvo enleiam-se na única que o podia olhar de volta. Abençoa-a com uma pena negra e brilhante, que ela delicadamente queima no fogo vivo. A pena arde e o fumo levanta a cortina entre mundos. Um imenso portal espelhado, de três portas, que reflectem apenas escuridão, levanta-se do chão. Imponente, massivo e incontornável.
Tum. Tum. Tum.
A primeira das portas espelhadas abre-se e de dentro saem mil pássaros de plumas brancas. Cada um sussurra uma parte de uma canção, uma porção de destino, um mapa cantado. Uma melodia enche o ar com uma cartografia viva, meândrica e sempre a mudar. Para seguir estes fados, para percorrer estes caminhos, as bússolas não funcionam. O último pássaro que atravessa o portal oferece-lhe um ramo de buxo, símbolo de eternidade.
Tum. Tum. Tum.
Com o ramo de buxo na mão, o seu corpo torna-se bússola e a mulher abre a segunda porta espelhada. Lá dentro encontra uma pequena divisão de paredes de terra, cheia de nozes, castanhas e amêndoas. Possibilidades, processos e eventualidades. No chão uns sapatos de ferro. Provações, desafios e tormentos. A três cegas cantam para que os calce, apesar do frio, do peso e do desconforto.
Tum. Tum. Tum.
Com os pés pesados, abre a terceira porta espelhada e encontra uma floresta com uma fonte de madrepérola, que reluz à luz do céu estrelado, cheia de corvos enjaulados e uma lavadeira curvada sobre as águas. Sob o olhar atento do Grande Corvo, a rapariga atravessa o portal espelhado e aproximando-se lentamente da lavadeira. O som da água fresca que brota da nascente cada vez mais hipnótico. Os pés pesam, mas os sapatos de ferro desgastam-se rapidamente. Do outro lado do espelho, os seus pés nus tocam o chão húmido e frio, enquanto ela pergunta à lavadeira “o que lavas?” A lavadeira, silenciosa, apenas levanta o manto de penas ensopado com as suas mãos gotejantes, calejadas e fortes. Pelo olhar do Grande Corvo e os lamentos das três Cegas, a rapariga avança até à fonte de madrepérola e, com a lavadeira, lava o manto, delicadamente esfrega e escova as penas.
Tum. Tum. Tum.
A lavadeira, que desde sempre lava e carrega as almas dos mortos pelas águas, veste-lhe ternamente o manto de penas, empurrando-a de volta pelo umbral. Os grilhões caem e as gaiolas abrem-se. Os pássaros voam para longe e os frutos amadurecem. As nozes, castanhas e amêndoas enraízam-se. As águas correm e o fogo esmorece. O fumo dissipa-se. Aqui na noite mais longa, o ritmo de três foi resgatado e abençoado pelo Grande Corvo, o sábio da noite fecunda. A jovem mulher, coberta de penas, sabe agora voar entre mundos, guiada pelas vozes das três Cegas e pelo ramo de buxo.
Conto de trama animista da minha autoria inspirado no conto tradicional “A Noiva do Corvo.”
Tal como escrevi nos Mitos e Histórias de Lugares: Por exemplo, o conto “A Noiva do Corvo” conta a história de uma mulher com um corvo na sua companhia. O corvo queria casar-se, então ela mandou chamar a mais velha de três lindas irmãs que moravam perto; a rapariga respondeu que não se casaria com o corvo, e ele com raiva arrancou-lhe os olhos. Eventualmente, a terceira irmã submeteu-se a casar-se com o corvo, e depois de muitas aventuras — de queimar penas, andar pela terra com sapatos de ferro, uma fonte de madrepérola com a lavadeira de vestido de penas, e o desencanto de pássaros que eram príncipes; todos os elementos simbólicos de cerimónias primordiais, agora completamente perdidas — a menina conseguiu casar-se com o corvo, que, na verdade, era um rei enfeitiçado.
🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência.
Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.