Rezos do Vento e do Barro

Edições Corpo-Lugar

 

Entre lume e névoa, as palavras voltam a ter corpo.
Aqui, o ego é barro que respira, o colonizado é raiz que recorda, o pensar é vento que desaprende a mandar.
Cada conto reza o mundo com a voz da terra viva, onde o humano moderno se desfaz em húmus e o mito volta a ensinar o real.

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A Deusa que Morre e Volta

Reza o povo que, muito antes de haver igreja ou sino, o Tejo corria grosso e vivo, serpenteando pelas colinas, e à sua beira cresciam árvores de folhas agudas e pele escura, os Teixos, árvores que sabiam morrer e voltar. De noite, quem por ali passava via a névoa tomar forma de mulher. Era Ataegina, a Senhora do Renascer, a que desce ao fundo da terra e regressa com a primavera nas mãos.

Diziam que o seu corpo era metade rio, metade raiz. E que os animais a seguiam: as cabras bravas das serras, as serpentes das grutas, os corvos dos cemitérios. Ela não falava, murmurava em sono antigo. E o chão escutava.

Um dia, o povo esqueceu os ritos. Deixaram de acender lume nos solstícios, de enterrar leite nas margens, de cantar o nome da Deusa junto ao rio.

As águas, tristes, começaram a andar turvas. O Teixo perdeu o brilho das folhas, e as cabras fugiram para os montes altos. Diz-se que Ataegina, sentida, desceu de novo ao submundo, levando consigo o fogo e a seiva.

Durante sete invernos não houve colheita, nem peixe, nem canto de ave. A terra dormia com fome. Foi então que uma mulher do povo, velha, curvada, de olhar firme, decidiu descer à cova onde o Tejo se enrola para dentro de si. Levava mel, folhas de teixo e uma pele de cabra. Dizem que se chamou a Velha da Encruzilhada, mas o rio tratava-a por filha. A velha chegou ao sopé da montanha e chamou três vezes:

“Ataegina!
Senhora das Sombras, das águas e das feridas,
traz de volta o pulso da terra!”

Silêncio. Depois, um sussurro de vento quente atravessou o vale. O chão abriu-se como boca antiga e dela subiu o cheiro do húmus e do leite azedo. A velha ajoelhou-se e ofereceu o seu sangue às raízes do Teixo. O tronco bebeu devagar, e das suas fissuras começou a brotar um líquido escuro, metade veneno, metade remédio.

Ataegina apareceu, envolta num manto de sombras e flores mortas. Nos seus olhos, o reflexo do rio a renascer. Disse à mulher: “Não me invoques por salvação.  Morre comigo e o mundo voltará a respirar.”

Na manhã seguinte, o Tejo rugiu como fera libertada. As águas subiram, lavando os campos, e os peixes voltaram às correntes. Nos montes, o Teixo brotou em folhas novas, e as cabras desceram das serras para lamber o sal da terra. Ataegina voltara, não para ser adorada, mas para lembrar o povo que viver é também apodrecer.

Desde então, nas noites de lua nova, as mulheres do vale juntam-se em segredo à beira-rio para o Ritual do Retorno:

Queimam folhas de teixo e vertem leite no chão.

Misturam o pó da cinza com água do rio.

E murmuram:  “Nem pura, nem santa. Que eu morra e volte com a terra.”

Ainda hoje se diz que, quando o Tejo cheira a pedra molhada e sombra, é Ataegina a passar, cabra e mulher, rio e noite, lembrando-nos que toda a morte é ventre e que o veneno, bem usado, pode curar. E quem quiser honrar o ciclo, basta sentar-se à beira do rio, meter os pés na água fria e dizer: “Que o que morre em mim encontre raiz. Que o que nasce em mim saiba o seu fim.” Depois, cala-te. Porque o rio responde, sempre responde, na língua funda do tempo.

Para lembrar que nem o escuro é ausência, nem a morte é fim, mas o respirar lento da terra viva.

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