A Ajudante de Dona Loba
Pela sua peculiaridade, a rapariga estava habituada a esconder-se desde sempre. Pelo escárnio e medo que recebia, cobria os pés fendidos debaixo das sete saias. Pés de cabra que sabiam subir pedras e equilibrar-se nos abismos de granito das serras ventosas que percorria. Com ela carregava apenas um mantéu e o pequeno espelho de prata, num bolso velho tecido de fio d’ouro.
De tempo a tempos, baixava às encostas para procurar trabalho, sempre estava mais quente aninhada ao pé das brasas da lareira de alguém, que na ventania das montanhas. Descera a uma das aldeias, um aglomerado casas de pedra escura, ruas íngremes e vielas labirínticas, onde as mulheres a olhavam com desconfiança.
Na subida ao castelo resolveu bater à porta de uma casa erma. Na pedra da soleira estava gravado APRE, em jeito de afastar tudo e todos. A rapariga das sete saias não se amedrontou e continuou a bater. A portinhola de madeira grossa e carunchosa, demorou a abrir-se num ronco breve, revelando uma velha irritada de olhos pequenos, “o que queres rapariga?” “Ofereço o meu trabalho em troca de cama e comida durante o inverno,” disse num sopro. A velha fechou a portinhola com força, ao mesmo tempo que gritava “Não preciso da tua ajuda!” Aturdida e desiludida, sem querer bateu com os cascos na pedra da entrada. Curiosa com o som bizarro, a velha, liberta os ferrolhos e abre uma nesga da porta que chia, perguntando “sabes os segredos da farinha e da cinza?” Apesar de não perceber a pergunta, a rapariga disse logo que sim e a velha convidou-a a entrar.
Na penumbra da casa de portadas fechadas, a velha olha longamente para ela, com um ar satisfeito. “Chamo-me Dona Loba,” diz. E começa a listar o que a jovem tem para fazer, desde terminar as estrigas de linho, avivar o fogo, remendar a colcha, varrer a cozinha, esfregar o chão e cortar as cebolas. A rapariga começa a correr dum lado para o outro seguindo as indicações. Dona Loba senta-se, sorridente, a beber um chá de urtigas enquanto observa a azáfama, satisfeita. “Donde vens?” “Das serras,” responde evasivamente a rapariga, sem parar de varrer o chão. Pelo canto do olho ela vê que Dona Loba tira um espelho de prata de uma bolsa esgaçada. Parou de repente de varrer, “Eh! Esse espelho é meu!” grita a bater com os cascos no chão. Afinal era o seu único pertence, que guardava com estima e carinho, não gostava que outros devassassem assim a sua intimidade, pensa em catadupa, tão zangada quanto espantada.
“O feitiço da porta,” começa a velha calmamente, “só deixa entrar quem tem um espelho mágico igual a este. Este é o meu, foi-me oferecido pela minha mãe, há muitos, muitos anos.” A rapariga não sabe o que dizer, apenas estacou no meio da sala, com o pó lentamente a assentar à sua volta. “O segredo é,” continua a velha, “rompemos o espaço e trespassamos o tempo, mudamos as peles e regeneramos a vida. Mas nunca, ninguém pode suspeitar,” diz a velha com um ar solene e olhos brilhantes, levando o dedo aos lábios, como quem pede silêncio.
Estas revelações só deixam a rapariga perdida e cheia de perguntas, sem dizer nada. “Sou a sétima filha, sou uma peeira, a guardiã dos lobos,” continua a velha. “Se aceitares ser minha ajudante, e a cada lua cheia me envolveres num círculo de farinha e cinza benditas, ensino-te tudo o que sei.” Instintivamente a rapariga leva as mãos ao interior das sete saias, tirando o seu espelho de prata da bolsa. Os dois espelhos brilham quando se reflectem mutuamente. “Bem-vinda,” diz-lhe Dona Loba. Pelos vistos, entrara na casa certa e tinha muito a aprender.
–
Ciclo de contos de Activismo Eco-Mítico
Conto, da minha autoria, de trama eco-mitológica, totémica e animista, inspirado no conto tradicional “A Criada da Dona Loba,” ou “Dona Lopa E o Segredo Revelado”
Tal como escrevi no prefácio do livro CRIATURAS E SERES DO IMAGINÁRIO PORTUGUÊS, de Pedro Salvador Mendes, editado pela Bambual Portugal:
É na lente animista e de diálogo multi-direcional onde estes Seres Primevos se enquadram, não surgindo apenas da psique humana em modo dissociação fantasiosa, mas como chaves de compreensão e cuidado do próprio território vivo. Hoje em dia temos apenas fragmentos distorcidos pelas sucessivas camadas de cristianismo e adulterados pela perspectiva cartesiana, num caminho linear, universalista e de superioridade moral, relegando estas chaves eco-mitológicas locais para o folclore, tidos como simples ignorância, superstição e conhecimento inferior. Na mesma linha é preciso cuidar do ilusório binarismo, pois estes Seres Primevos não são necessariamente bons ou maus, apesar de terem sido sistematicamente diabolizados e moralizados desde à mil e quinhentos anos através da lente cristã no território português. De tal forma que, muito destes espíritos do lugar foram sincretizados em santos locais, os fugitivos, e os encontrados em árvores e nascentes, mantendo a identidade comunitária e a primeva mitologia interdependente com o território habitado. Uma identidade mais vasta que exclusivamente humana.
Então, e se as Mouras Encantadas fossem ecos do legado ancestral destes Seres Primevos, recordando-nos da devoção à nascentes, poços e rios, exigindo cuidado e responsabilidade? E se as Peeiras, as sétimas filhas que comunicam com lobos e dirigem alcateias, fossem reverberações dos primeiros momentos de domesticação dos caninos? E se, as Sereias fossem seres que, ao invadir os sonhos dos pescadores e marinheiros, os advertissem das grandes vagas e correntes invisíveis, ao invés de apenas os atrair para a morte? E se a sua voz fosse a do vento a silvar nos rochedos, que para um ouvinte esclarecido indicaria automaticamente a força das vagas? E se, as Velhas Lavadeiras fossem lembranças comunitárias de clãs ribeirinhos e da sua sagrada sabedoria paradoxal da água, que tanto afoga, como lava ou satisfaz a sede?
Outros Contos
-
Sete Encantadas Senhoras
-
A Ajudante de Dona Loba
-
A Aranha Prometida
-
A Noiva da Noite
-
Canções de Amassar
-
O esqueleto totémico e os contos envoltos em micélio
-
Os contos como mapas para além da psicologia humana
-
A Menina Cabra – Belinda e Benilde
-
As três Senhoras
-
O Sonho da Velha
-
A Última Cabra Brava
-
Contos Antigos para os Tempos Modernos
-
Abismo Ritual
-
A Serpente e a Lua
Outros Contos
-
Sete Encantadas Senhoras
-
A Ajudante de Dona Loba
-
A Aranha Prometida
-
A Noiva da Noite
-
Canções de Amassar
-
O esqueleto totémico e os contos envoltos em micélio
-
Os contos como mapas para além da psicologia humana
-
A Menina Cabra – Belinda e Benilde
-
As três Senhoras
-
O Sonho da Velha
-
A Última Cabra Brava
-
Contos Antigos para os Tempos Modernos
-
Abismo Ritual
-
A Serpente e a Lua
🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência.
Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.