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Expandir o Contentor Emocional
Aqui, mesmo à beira do caos, precisamos de reclamar e remembrar outro tipo de relações, outras camadas da psique, normalmente entorpecidas e muito erodidas. Devido a este entorpecimento e amnésia, facilmente nos adormecemos e constantemente dissociamos, fugindo do luto e das dores do mundo. Fechamo-nos em vez de nos aventurarmos a sentir como se o mundo inteiro importasse.
A expressão Expandir o Contentor Emocional refere-se ao desenvolvimento e co-regulação, de capacidades emocionais e sensoriais, dilatando os recursos afectivos, de modo a acolher a Vida em toda a sua beleza, paradoxos, complexidade e violência. De modo a acolher o fim do mundo.
A Expansão do Contentor Emocional, individual e colectiva, ajuda no alargamento das possibilidades de acolhimento, na tensão e confronto com dilemas desorientadores, no encontro com dissonâncias que põem em causa como achamos que o mundo funciona. Tem um substrato ecológico no seu posicionamento, tal como no processo de luto na decomposição de crenças mais superficiais.
Investigação Regenerativa
Como diz Vanessa Andreotti do colectivo GTDF: “Teremos de expandir as nossas capacidades neurobiológicas para podermos sequer começar a imaginar, desejar e esperar algo diferente.”
Segundo a articulação da Investigação Regenerativa, “uma metodologia de concepção de ensino/aprendizagem que visa expandir os quadros de referência cognitivos, elevar os limiares afectivos/emocionais e alargar o âmbito das possibilidades de relacionamento, construção de relações e responsabilização”, é essencial melhorar a nossa capacidade colectiva de sobriedade emocional, maturidade relacional, discernimento intelectual e responsabilidade intergeracional. Esta é uma prática não prescritiva que, entre outras coisas, cultiva a humildade e a inteligência emocional e relacional, e cria resistência e resiliência para os desafios da policrise/metacrise que temos de enfrentar em conjunto.
O artigo referido acima aponta que a Investigação Regenerativa consiste em expandir as opções intelectuais para além dos padrões de raciocínio universalistas, cartesianos, antropocêntricos (…); e que em termos de afeto, tem a ver com a expansão da nossa capacidade colectiva para enfrentar, sentir e processar os aspectos difíceis e dolorosos da realidade, sem nos sentirmos sobrecarregados, imobilizados ou a exigir soluções rápidas para sermos salvos do desconforto. Relacionalmente tem a ver com a expansão da capacidade de construir relações baseadas na confiança, reciprocidade, consentimento e responsabilidade, abraçando a ambiguidade, a incerteza, os paradoxos e as contradições.
E se tivemos espaço vivo para sentir e relação para além da nossa limitada caixinha de identidade?
Pensamento Ecológico
Quero enlaçar aqui o trabalho seminal de Lorraine Code sobre o Pensamento Ecológico. Tal como ela refere na página 20 do seu livro Ecological Thinking – The Politics of Epistemic Location: “(…) o pensamento ecológico interroga e esforça-se por desestabilizar as auto-certezas do capitalismo ocidental e as epistemologias de domínio que este sustenta. No entanto, o pensamento ecológico não é unilinear (…), pois emerge e aborda questões entrelaçadas e por vezes contraditórias(…).” O Pensamento Ecológico é fundamental exactamente porque, tal como uma ecologia vibrante, co-cria redes intrincadas de confiança e é abertamente cooperativo (ou seja, não é sobre nós ou exclusivamente para nosso benefício como o pensamento individualista). O Pensamento Ecológico também não se limita a pensar sobre projecções ou ideações superficiais de ecologia, ou “ambiente”.
Segundo o Pensamento Ecológico, comprometemo-nos e empenhamo-nos a participar na co-criação, regeneração, sustento de habitats viáveis, “preparados para assumir os fardos e as bênçãos do lugar, da identidade, da materialidade e da história, e para trabalhar com as possibilidades e limitações locais, encontradas e criadas, das vidas cognitivas-corporais humanas (e não só).”
Segundo Code, o Pensamento Ecológico distancia-se da procura de princípios e verdades causais ou transcendentes; aqui envolvemo-nos e movemo-nos com o território, nas suas redes vibrantes de complexa interdependência e circularidade, nas suas sombras e paradoxos. Esta prática de “pensar com”, sensorial e visceralmente, política e historicamente, assume que “os ecossistemas – tanto metafóricos como literais – são tão cruéis como bondosos, tão imprevisíveis e avassaladores como ordenados e nutritivos, tão destrutivos (…) como cooperativos e mutuamente sustentadores.” O Pensamento Ecológico não é uma questão de substituir um discurso unificado e unificador por outro. O discurso ecológico é inerente e sistemicamente paradoxal e instável, sendo o seu ponto forte o navegar na complexidade.
Se falamos de co-regulação, falamos de Pensamento Ecológico, pois o ser-no-mundo incorporado difere radicalmente da forma perfeita do homem autónomo, cujo pressuposto de domínio suprime a diversidade em nome da simplicidade instrumental.
Expandir o Contentor Emocional é um processo ecológico, situado, incorporado e interdependente. Reclama um imaginário diverso, enraizado, maduro e responsável. Acolhe e permite um tempo longo e cuidadoso antes de chegar a uma conclusão, resistindo a encerramentos prematuros e categóricos.
Mas, e como lidar com o “expandir” numa cultura de violenta e sintética expansão?
Se as palavras são feitiços, temos de cuidar dos seus territórios vivos e múltiplos, acarinhando as suas sombras, brumas e profundidades. Ora, numa cultura normativa e que tende a celebrar a homogeneidade, a expressão Expandir o Contentor Emocional, pode ser facilmente mal interpretada, apagando a sua inata abertura à diversidade e co-participação. O movimento de expansão está envolto, na nossa memória cultural, como conquista e domínio, ou com um crescimento e progresso linear, infinito e transcendente. A etimologia do verbo expandir vem do francês antigo espandre “espalhar, estender, ser derramado”, e do latim expandere “espalhar, desdobrar, expandir”.
Confesso que, na minha imaginação limitada por este legado cultural, a imagem da palavra expandir aparece-me como um manto apertado de Spandex, Lycra ou elastano, uma fibra sintética conhecida pela sua excepcional elasticidade –um copolímero de poliéter-poliureia inventado em 1958 pelo químico Joseph Shivers. Uma espécie de casulo-ninho que vai crescendo, dilatando e alargando.
Mas esta não é uma imagem de elasticidade biológica, uma propriedade essencial dos tecidos conjuntivos, como os vasos sanguíneos, os pulmões e a pele, que confere elasticidade e resistência aos estiramentos dos corpos. A elasticidade biológica não se expande infinita e artificialmente, tem o seu próprio limite.
Mas o que me aparece é um manto imaginado e tecido de fibras plásticas, esses materiais sintéticos populares, baratos e fáceis de produzir, duráveis e resistentes a rugas. Feitos de polímeros à base de petróleo, sendo uma forma de plástico, um produto da tecnologia de domínio e progresso. Tecidos sintéticos não biodegradáveis, gerando poluição por microplásticos, que acabam por chegar aos rios, lagos e oceanos, constituindo uma grave ameaça para os organismos marinhos (e não só), danificando os solos e envenenando as águas subterrâneas. A promessa destas fibras é a sua potente e sintética elasticidade, que expande, mas também espreme e aperta ao tentar voltar à sua forma original.
Claramente esta não é uma imagem adequada às práticas sustentadas de Expansão do Contentor Emocional.
A questão é que estas práticas não são lineares e são ciclicamente pesadas, afundam e carregam. São também práticas de luto e decomposição. Então, o contentor não se pode expandir indefinidamente sem sustento apenas para a seguir retornar à forma original deformado, nem ter a impertinência de não se decompor –um afastamento dos princípios ecológicos de ciclicidade, e por isso incapaz de suster processos desafiantes, complexos e multicamada. Por outro lado, temos também os contentores plásticos rígidos que, apesar da sua enorme resistência (e além de criarem os mesmo problemas ecológicos descritos acima), não expandem e têm um ponto-de-ruptura. Que possamos assumir que o conforto dos materiais tão sinteticamente duráveis nos projecta para um lugar de ilusão de controle e estabilidade que nunca existiu num mundo vivo. Um território da psique, asséptico e estéril, que adia e evita as rupturas a todo o custo, fugindo da dor da inevitável transformação. Partir e romper faz inevitável e visceralmente parte do processo.
Contrariando as expectativas de processos lineares, puros e evolutivos (numa ideação errada do processo biológico evolutivo, que é bem mais dendrítico, em teia e caótico), a Expansão do Contentor Emocional, tecido com as linhas da Investigação Regenerativa no tear do Pensamento Ecológico, abre-se e expande-se também através dos rompimentos e rupturas, tal como uma semente fende a casca para enraizar e ser árvore. Como uma traça rasga o casulo com as suas novas asas.
Como diz Tyson Yunkaporta no seu livro, Right Story, Wrong Story: “temos de libertar a expectativa de aterragens suaves.”
A Expansão do Contentor Emocional não serve para nos mantermos entorpecidos e dormentes, aprisionados em processos de desenvolvimento (exclusivamente) individual e excepcional, sem nunca permitimos que o mundo se derrame em nós. Não é um lugar para nos mantermos privilegiada e inocentemente ignorantes, adormecidos nas nossas ideações de conquistas e pureza. É um acolhimento afectivo, visceral e colectivo, pleno de rachas e falhas, decomposição e putrefacção, rugas e torções, que nos permite resgatar maneiras para sentir e processar as dificuldades e dores do mundo, sem nos sentirmos sobrecarregados, paralisados ou exigir e impor soluções rápidas para sermos salvos do desconforto.
Colectiva e responsavelmente sustemos, entrançados e implicados na diversa complexidade ecológica. Que bravamente permitamos as rupturas necessárias ao processo, por serem o contentor emocional a maturar e dilatar. Que assumamos o lugar valioso na ecologia que somos, que nos envolve e atravessa, saindo da nossa caixa individualista e antropocêntrica, maturando em responsabilidade e reciprocidade.
Que materiais imaginas como este contentor afectivo que expande, mas que também se rompe, ciclicamente?
🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência.
Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.