TEMPO DE LEITURA – 4 MINUTOS
Encantar o Monstro
Lá de longe escutava a melodia que me invocava.
Que me puxava e enlevava.
O meu grande corpo ondulante serpenteava lentamente na sua direção.
~
Lá dos ermos escutava as histórias.
As cantadas e as sussurradas.
O meu imenso corpo ondeante cobreava vagarosamente no seu rasto.
~
Apesar da longa distância, dava conta dos frutos maduros e sumarentos.
Cheirava o mel e o leite enquanto eram entornados para me chamar.
O meu vasto corpo unduloso rastejava devagar na sua esteira.
~
De longe sentia a dor e a crueza do mundo.
Eu que trazia uma fome antiga.
Que tinha a sede dentro.
Mesmo cega, o meu desmedido corpo híbrido, macio e vulnerável, palpitava, voraz.
~
Lambia os vestígios.
Tocava nos vislumbres.
Colhia as migalhas.
Das lembranças do futuro.
A potência do corpo largo, conduzido pelo elixir primordial do cosmos.
~
Depois de eras dormente, despertei.
Saí da cova.
Arranhei as pedras.
Larguei a pele.
O meu amplo corpo sulcou o chão.
Estou a caminho. Escutas a Terra a rugir?
A Potência da Anima
R. B. Onians, no seu livro The Origins of European Thought About the Body, the Mind, the Soul, the World, Time and Fate, que me foi recomendado por Fabrice DuBosc, refere que Anima pode ser concebida como uma serpente –Petrónio fala do retorno da potência sexual como o retorno da Anima. A Alma aparecia como um ofídio, pois era identificada particularmente com a medula espinhal e esta última assemelha-se a uma serpente. A ideia de Genii, que equivale ao que sobrevive à morte, também é associado à forma de serpente e ao inconsciente.
O facto de emergir de novo da sua pele velha é uma das razões pelas quais a forma de uma serpente parece adequada à alma imortal. Habitar na terra também é uma caraterística que não é peculiar às serpentes. Acreditava-se que o veado, que perde os chifres, renovava a sua vida engolindo a cobra e depois a água, ou seja, recebendo, uma nova alma-vida e um novo fluído vital.
Este fluído vital é também personificado em Okeanus. Que é, segundo os gregos, o rio serpenteante que rodeia a terra –como um laço que rodeia a terra. Aparentemente em forma de serpente, o rio ou água primordial, era concebido como uma serpente com cabeça humana e cornos. O elemento procriador em qualquer pessoa aparecia sob a forma de uma serpente. Havia um imaginado elixir cósmico primordial ou poder procriador, líquido e serpenteante –a designação parece ter sido emprestada dos semitas e fenícios e significa “circular”. Os sumérios, muito tempo antes, referiam-se a Hubur, a corrente de água salgada que circunda o mundo, que dáva à luz a Víbora, a Serpente Furiosa.
A crença traçada é semelhante à babilónica; a terra era circundada pelo elemento masculino, Apsu, uma serpente identificada com ou na água. Com ele estava outra serpente, Tiamat, “mãe de todos eles”. O rio Eufrates, considerado uma serpente, era ‘a alma da terra’. A mais antiga concepção grega sobre a estrutura do universo, atribuída a Epicuro, diz que “o todo era desde o início como um ovo, a serpente à volta do ovo era então uma faixa apertada como uma coroa ou cinto à volta do universo”. Na Pistis Sophia gnóstica, as trevas exteriores eram uma serpente, envolvendo o mundo inteiro, com a cauda na boca.
Esta Serpente que envolve o cosmos, cujo significado habitual é “Tempo”, pode ser relacionada com o fluido vital procriador com o qual se identifica a medula espinal que se acreditava tomar a forma de serpente, mas também passou a significar “tempo de vida”, “período de tempo” e, portanto, “eternidade”. A serpente está também ligada à mítica e eterna Fénix, parece ser a semente da nova vida no mito da Fénix. Antes da morte, constrói um “ninho” e morre sobre ele, depois, dos seus ossos e medula, nasce primeiro como que um verme (cf. o antigo uso inglês e alemão de “verme” para “serpente”), só depois se torna pássaro.
Que possamos encantar de volta a Alma arcana, a Anima selvagem e ecológica.
A que sagra as águas e o chão.
A que traz consigo a força do chão e da renovação.
Que o monstro fluído e fecundo do tempo nos envolva, enquanto lhe cantamos histórias e ele nos oferece memória.
Que a Alma primal, elixir cósmico primordial e poder procriador, líquido e serpenteante, nos reclame de volta.
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🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência.
Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.