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Ser incompleto num mundo finito
{cruzar fronteiras}
Num mundo inevitável e profundamente entrelaçado, o que nos guia são os limites. Somos sistemas vivos e abertos em relação reciproca com outros sistemas, simplesmente por respirar e trocar átomos de carbono, contribuindo para a atmosfera terrestre; ou por fazermos parte do ciclo biológico da água que passa pelos nossos corpos, como as nuvens, gelo e reservatórios subterrâneos. Somos seres orgânicos e naturalmente incompletos, pois o que nos completa é a intrincada rede de vida que nos sustenta e anima.
Os limites são orgânicos, flexíveis, complexos e vivos e não muros, altos e rígidos. Estes são limites que interpenetram a diversidade nos limiares de cada corpo ou território finitos. São as fronteiras da alquimia da vida ela própria. E estes contornos não são nem impermeáveis, nem infinitos, mas bordas rítmicas à beira do caos que se mexem e transformam, mas também partem.
Sabemos isso no próprio corpo quando nos encontramos no limite, quando não respeitamos as fronteiras pessoais, quando damos demais e perdemos a noção do limite. Ficamos exaustos, perdidos e esgotados. Talvez até ansiosos. Precisamos de ver para além da cruel narrativa neoliberal da positividade tóxica e constante superação de limites, que nega os ciclos, o tempo profundo e o entrelaçamento na meritocracia alienada.
Na actual cultura de extração, que implacavelmente tudo usurpa, numa monocultura de civilização que se acha acima ou separada da natureza, os limites naturais têm sido sistematicamente ultrapassados.
Há a fantasia colectiva, que a vida moderna confortável do norte global vem da técnica e perícia da superior civilização urbana, negando e tornando invisíveis as opressões, escravizações e constantes violações dos limites dos territórios, ecossistemas, animais e povos subjugados à sua fome insaciável, em cada genocídio e ecocídio. Negando o entrelaçamento, a responsabilidade e a simbiose.
Acontece que subjugar os limites viola-nos a todos. Pois como seres profundamente ecossistémicos, estas atrocidades atravessam-nos, ferem-nos, esgaçam a psique, mesmo quando ainda acreditamos beneficiar desta narrativa de progresso, superioridade e monocultura. A cada limite natural superado, fronteiras da psique e corpos humanos são também esventradas.
Nas vidas constantemente mineradas e estripadas do sul global, os corpos perdem mundos a cada dia, e no norte global as emoções ecológicas rasgam a psique colectiva sussurrando uma desesperança que julgamos estar lá longe e no futuro. Mas está já aqui, pois os limites da terra são os nossos próprios limites.
A imatura psique humana da modernidade, perdida na sua suposta superioridade, independência e visão túnel, tende a encapsular a sua vulnerabilidade em ansiedades que arregimentam, perpetuam e acentuam a exclusão e opressão, em fantasias dementes de pureza, controlo e violência fascista ao serviço da “economia do medo”. O que só extrema a ignorância e negação do entrelaçamento, da necessária diversidade e da vida ela mesma.
Richard Feynman, foi um físico teórico americano, que ganhou o Prémio Nobel da Física em 1965 sendo considerado uma das maiores mentes do século XX. Ele usa a analogia do xadrez para se referir ao desconhecimento e à complexidade nos processos científicos de perceber o mundo: “Uma analogia para tentar ter uma ideia do que fazemos para tentar compreender a natureza é imaginar que os deuses jogam um grande jogo como o xadrez. E tu não sabes as regras do jogo, mas tens permissão para olhar para o tabuleiro de vez em quando, talvez num cantinho. E, a partir dessas observações, tentas descobrir quais são as regras do jogo, quais são as regras de movimentação das peças.” O que é um posicionamento muito diferente da superficial ideologia de controle e domínio prevalecente hoje em dia.
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Os Nove Limites Planetários
A cada ano os nove limites planetários são constantemente cruzados cada vez mais rápido. Não pela humanidade, mas pelos países ditos “ricos”, os que extraem, oprimem, usurpam e fecham fronteiras. A comunidade científica estabeleceu os chamados limites ambientais, ilustrando como as exigências de recursos e energia constantemente extirpados do planeta pela civilização moderna ultrapassam os limites do que é considerado viável para a sustentação da própria vida. Cruzamos estas fronteiras por conta e risco dos ecossistemas integrados globalmente, pois os resultados são destrutivos e imprevisíveis, por sacrificarem a integridade da biosfera. É preciso ter noção que estas métricas foram elaboradas segundo a visão antropocêntrica, em função dos limites da viabilidade da vida humana, desconsiderando, portanto, todas as complexas camadas que elaboram a trama da vida.
Já desafiámos seis dos nove limites.
Existem nove processos biofísicos, sete dos quais são enquadrados por limites quantitativos, em constante interação. A lista abaixo contém as definições correntes actuais, todas derivadas de um sistema económico predatório com as suas grandes corporações que se são as principais provocadoras destas emissões excessivas:
- alterações climáticas, como as pegadas ambientais nacionais e as emissões excessivas de gases com efeito de estufa;
- a acidificação dos oceanos e os sistemas biológicos marinhos;
- o empobrecimento do ozono estratosférico;
- perturbação do ciclo do azoto e do fósforo
- utilização global da água;
- alteração da utilização dos solos;
- erosão da biodiversidade;
- o aumento dos aerossóis e das substâncias existentes na atmosfera, como os produtos químicos sintéticos;
- a introdução de novas entidades na biosfera.
As nove fronteiras planetárias e o seu estado
Alterações climáticas: A alteração do rácio entre a energia que entra e a que sai da Terra, causada pelo aumento dos gases com efeito de estufa e dos aerossóis. O aumento da radiação retida provoca um aumento das temperaturas globais e altera os padrões climáticos. Esta fronteira é transgénica.
Novas entidades: A introdução de novas entidades inclui produtos químicos e substâncias sintéticas (por exemplo, microplásticos, desreguladores endócrinos, poluentes orgânicos), materiais radioactivos mobilizados antropogenicamente (por exemplo, resíduos nucleares, armas nucleares) e intervenções humanas nos processos evolutivos, como os organismos geneticamente modificados (OGM) e outras modificações diretas da evolução. Atualmente, a quantidade de substâncias sintéticas libertadas no ambiente sem testes adequados está acima do nível de segurança.
Diminuição do ozono estratosférico: A camada de ozono estratosférico protege a vida na Terra das radiações ultravioletas nocivas. A diminuição da camada de ozono na atmosfera superior, principalmente devido a produtos químicos produzidos pelo homem, permite que mais radiação UV nociva chegue à superfície da Terra. A quantidade total atual de ozono estratosférico está dentro dos níveis de segurança e a recuperação está em curso, com valores ainda abaixo dos níveis de meados do século XX.
Carga de aerossóis atmosféricos: O aumento das partículas em suspensão no ar, proveniente de actividades humanas ou de fontes naturais, influencia o clima, alterando os padrões de temperatura e precipitação. Atualmente, a diferença inter-hemisférica na carga de aerossóis atmosféricos está dentro do espaço operacional seguro.
Acidificação dos oceanos: A acidificação dos oceanos é o fenómeno de aumento da acidez (diminuição do pH) da água dos oceanos devido à absorção de CO2 atmosférico. Este processo prejudica os organismos calcificadores, com impacto nos ecossistemas marinhos, e reduz a eficiência do oceano em atuar como sumidouro de carbono. O indicador da acidificação dos oceanos, o atual estado de saturação da aragonite, está no espaço de segurança operacional, mas está perto de ultrapassar o limite de segurança.
Modificação dos fluxos biogeoquímicos: A perturbação dos ciclos naturais de nutrientes de elementos-chave como o azoto e o fósforo através do ambiente e dos organismos, cruciais para o suporte da vida e a manutenção dos ecossistemas. Tanto o fluxo global de fósforo para o oceano como a fixação industrial de azoto (extração de azoto da atmosfera) perturbam os ciclos de nutrientes correspondentes para além do nível de segurança.
Alteração da água doce: A alteração dos ciclos da água doce, incluindo os rios e a humidade do solo, tem impacto em funções naturais como o sequestro de carbono e a biodiversidade, e pode levar a mudanças nos níveis de precipitação. As perturbações induzidas pelo homem tanto na água azul (por exemplo, rios e lagos) como na água verde (ou seja, humidade do solo) ultrapassaram o nível de segurança.
Alteração do sistema terrestre: A transformação das paisagens naturais, nomeadamente através da desflorestação e da urbanização, diminui as funções ecológicas, como a fixação do carbono, a reciclagem da humidade e os habitats para a vida selvagem, todas elas cruciais para a saúde do sistema terrestre. Globalmente, as áreas florestais remanescentes nos três biomas (tropical, boreal e temperado) caíram abaixo dos níveis seguros.
Integridade da biosfera: O declínio da diversidade, extensão e saúde dos organismos vivos e dos ecossistemas ameaça a capacidade da biosfera para co-regular o estado do planeta, afectando o equilíbrio energético e os ciclos químicos na Terra. Tanto a perda de diversidade genética como o declínio da integridade funcional da biosfera ultrapassaram os seus níveis de segurança.
Referências
- Planetary boundaries – Wikipedia
- All you Need to Know about the 9 Planetary Boundaries
- Planetary boundaries – Stockholm Resilience Centre
- Descarregar a ilustração das Fronteiras Planetárias 2023 (Crédito: Azote para o Stockholm Resilience Centre, baseado na análise de Richardson et al 2023) Atribuição: CC BY-NC-ND 3.0
- Richardson, J., Steffen W., Lucht, W., Bendtsen, J., Cornell, S.E., et.al. 2023. A Terra para além de seis dos nove Limites Planetários. Science Advances, 9, 37.
- Steffen, W., Richardson, K., Rockström, J. & Cornell, S.E., et.al. 2015. Planetary boundaries: Guiar o desenvolvimento humano num planeta em mudança. Science 347: 736, 1259855
- Rockström, J., Steffen, W., Noone, K., Persson, Å., et.al. 2009. Um espaço operacional seguro para a humanidade. Nature 461: 472-475 DOI 10.1038/461472a
- Rockström, J., W. Steffen, K. Noone, Å. Persson, et.al. 2009. Planetary boundaries: exploring the safe operating space for humanity. Ecologia e Sociedade 14(2): 32
- https://en.chessbase.com/post/feynman-using-chess-to-explain-science
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