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Para além dos espelhos

por que a crítica cultural alimenta a eco-mitologia

{integrar a crítica cultural na investigação e na narrativa da eco-mitologia}

 

Escrevo isto como um emaranhado de escuta profunda e imaginação indomável. Hoje, mergulhamos no coração do Ativismo Eco-Mítico, um caminho que nos convida a reimaginar as histórias que contamos sobre nós mesmos e sobre a Terra.

Quero focar num aspeto crucial deste trabalho: a interconexão inseparável entre pesquisa, narrativa e crítica cultural. Não se trata apenas de crítica académica, mas de um ato profundo de responsabilidade poética, revelando as óticas através das quais percebemos o mundo.

Vamos responder a três perguntas centrais, com base na prática do ativismo eco-mítico:

  1. Por que é que esta conexão entre crítica e eco-mitologia é crucial?
  2. Como é que esta crítica se manifesta no processo de pesquisa e narrativa?
  3. Por que razão esta é uma fase tão importante na «fermentação» do ciclo eco-mítico?

Porquê crítica?

O ativismo eco-mítico é definido como ativismo literário, afetivo e percetivo, mas a sua base não nega a necessidade de confrontar tiranias e injustiças. A investigação e a escrita eco-mitológicas são, em si mesmas, um «ato intencional que perfura as nossas membranas de negação».

Mas por que precisamos da crítica cultural para resgatar a psique eco-mitológica?

A modernidade ergueu uma visão de mundo historicamente confortável e supostamente normal, baseada em idealizações monolíticas e puristas. A crítica cultural é vital porque nos exorta a enfrentar as profundas injustiças que nos desumanizam e desnaturalizam por meio da suposta universalidade e estabilidade de certas verdades.

O ativismo eco-mítico reconhece que a cultura moderna se estabeleceu como «a-mítica», alegando ser detentora da «verdade universal, objetiva e absoluta». Isso é, obviamente, um mito perigoso. Ao sequestrar todas as coisas como símbolos pessoais, limitámo-nos a imagens arquetípicas eurocêntricas e a uma psique exclusivamente humana e abstrata.

Quando investigamos contos e mitos tradicionais, como fazemos no ativismo eco-mítico, rapidamente percebemos que eles estão carregados de dogmas insidiosos e preconceitos. Esses dogmas limitam-nos e exilam-nos de relações mais amplas de parentesco e pertencimento. Por exemplo, o processo de investigação-oração para o livro O Santuário buscou as raízes da identidade moderna em «todos os seus preconceitos, violência intrínseca e limitações absurdas».

A crítica cultural, portanto, é a lente que nos permite reconhecer e admitir as forças internas que minam a nossa identidade, colocando questões difíceis.

Como podemos imaginar um futuro vivo se não reconhecemos e desmantelamos criticamente as matrizes culturais que nos alienam da participação e do encontro com o mundo?

Conectar através da decomposição

A conexão entre crítica cultural e narrativa não é uma escolha entre ação ou passividade, mas um “complemento fértil e nutritivo”. Ela é alcançada por meio de um processo criativo e intencional de desconstrução crítica, que muitas vezes é invisível, lento e contextual.

O trabalho de pesquisa e narrativa em eco-mitologia, que usa narrativa especulativa, é estruturado para “desemaranhar criativamente os nós das crenças recentes”. Isso requer uma profunda responsabilidade e o reconhecimento de que a amnésia e a extinção do pensamento mítico tornam a psique infértil.

Como isso se traduz na prática de recontar mitos e contos? A crítica cultural é a “queima lenta” que decompõe as estruturas normativas incorporadas nos contos tradicionais. Essas estruturas incluem:

  • A superioridade e o controlo dos seres humanos sobre tudo o mais (antropocentrismo).
  • O racismo inerente aos personagens escravizados (colonialidade).
  • A imaturidade, maldade e incapacidade das mulheres (patriarcado).
  • A negligência, abstração e silenciamento da sabedoria sazonal e ecológica (dessacralização do lugar que gera analfabetismo ecológico e ecocídio).

Ao realizar este trabalho crítico, trabalhamos os contos com «fios férteis e animistas». O ato intencional de criticar e decompor essas estruturas ossificadas abre espaço para os contos recuperarem a sua integridade, sacralidade e sabedoria eco-cartográfica. Por exemplo, as mulheres recuperam soberania e dignidade, e os lugares deixam de ser um cenário inerte.

Portanto, a crítica cultural é o motor que permite à Eco-mitologia transcender a mera interpretação psicológica. Ajuda-nos a ouvir uma ecologia polivocal, historicamente situada e viva, que vai além da psique individual.

Fermentação vital

A crítica cultural não é apenas um passo, mas a própria fermentação do ciclo eco-mítico. Por que essa fase é tão importante para a metamorfose da percepção?

O ativismo eco-mítico é “ativismo lento”, um trabalho de cuidado e atenção. A fermentação crítica é necessária porque “a prática por si só não muda as nossas referências”. Ela não revela as lentes através das quais observamos o mundo, nem desmantela os quadros perversos da normalidade, incluindo o modelo aceito de como protestar ou resistir.

A crítica, ao desvendar o mito, torna-se um gesto que transforma subtil, mas profundamente, a psique e a forma como nos relacionamos. Essa transformação não é linear nem triunfante; é um compromisso com uma metamorfose mais ampla e contínua.

É no lento processo de crítica e decomposição que ancoramos a ira sagrada, quebramos a normopatia e fabulamos outras histórias. Fabular a partir da crítica é uma prática frutífera, das entranhas da Vida, que traz a imaginação, o arracional e a arte como linguagens fundamentais para mudar a perceção cultural.

Como afirma o Manifesto Eco-Mítico, este não é um caminho que busca “soluções ou redenção”. Rejeitamos os encantos do progresso e as fantasias de melhoria pessoal. A crítica é essencial porque “não há flores sem adubo, lama ou escuridão”. O Ativismo Eco-Mítico propõe práticas contextuais que “cuidam do que apodrece como se cuida das sementes”.

A crítica cultural, ao expor os preconceitos da nossa cultura e identidade, permite-nos escapar do “salão de espelhos da identidade moderna”uma identidade hiperindividualista e tecnológica centrada no ideal de sucesso, enraizada numa cultura extrativista e profundamente hierárquica.

Se a crise foi criada por uma forma de pensar linear e solucionista, como podemos gerar alternativas se não desconstruirmos criticamente essa mesma forma de pensar?

A fermentação crítica exige que nos rendamos e permitamos que os mitos e contos nos agitem e perturbem, acendendo faíscas de resistência e vontade de transformar.

Investigação em curso

A crítica cultural na Eco-mitologia não é um luxo, mas uma necessidade orgânica para regenerar a nossa relação com o mundo, assumindo o papel de ativismo afetivo e eco-mítico.

Deixo-vos com algumas perguntas:

  • Como a minha perceção do mundo é limitada pela «racionalidade unidimensional» ou pela ilusão de controlo?
  • Que dogmas insidiosos da modernidade, como o antropocentrismo ou o patriarcado, estão «amassados» nas histórias e crenças que carrego?
  • O que sinto que evito ou a negar para manter a suposta normalidade da minha visão do mundo?
  • Estou disposto a me envolver no trabalho lento do cuidado e da atenção, sabendo não haver “chegadas triunfantes”, mas sim metamorfoses contínuas?

O ativismo eco-mítico nos convida a cultivar um sentido poético e profundo de responsabilidade. Ao trabalhar criticamente com mitos, convergimos para a recuperação de relações íntimas de afeto na nossa relação com o mundo.

A proposta é simples, mas radical: «Ao ancorar a raiva sagrada, quebramos a normopatia, fabulando outras histórias, aqui mesmo, nas pequenas ninharias da vida quotidiana.»

Que possamos encontrar espaço para a rendição e a digestão, transformando-nos lentamente. Que a fabulação especulativa nos ajude a recuperar a nossa sabedoria inata do mistério, da complexidade e do paradoxo, que se desdobra em ciclos de histórias e pequenos gestos de resistência.

Obrigado pela leitura. Continuemos a tecer laços no meio do fim.

 

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