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Quando o Eu se Lembra que é Território

{Reaprender a Ser Mundo}

 

A identidade moderna, educada a proteger-se com muros altos e lentes espessas, foi ensinada a ver-se como um centro de controlo, separado do mundo e desconectado das suas condições de criatividade — uma arquitetura de separação que ensina o eu a defender-se, a endurecer, a provar a sua existência através da exaustão.

Esta forma de ser, aparentemente autónoma e auto-centrada, confunde invulnerabilidade com liberdade, baralhando muitas vezes proteção com isolamentoo eu murado aprende a regular-se sozinho, a conter o grito, a normalizar o desconforto, como se a dor fosse falha e não arauto. Mas há um momento — às vezes suave como o vento, outras vezes abrupto como uma queda — em que algo se racha. E nesse rachar, começa a brotar uma lembrança antiga: a de que o “eu” é território, húmus, feito das mesmas camadas de histórias, luto, toxinas e poeira estelar dos lugares que habita. Porque sob o cimento das defesas, pulsa uma memória mais antiga, a do corpo poroso, relacional, atravessado por atmosferas, fantasmas e futuros. A dor, afinal, pode não ser só tua. O cansaço pode ser um alarme do sistema maior.

É nesse lugar mais fundo — ou talvez mais vasto — que surge o convite à co-regulação ecológica. Um re-aprender a escutar com o corpo inteiro, não apenas a nossa ansiedade, mas os ciclos do vento, os gestos da água, os silêncios do solo. Recuperamos aí a capacidade esquecida de nos sintonizarmos com o mundo vivo pleno de agência, como um campo co-regulador, e não como pano de fundo inerte. Não é uma metáfora, mas uma prática.

Em vez da procura constante por estabilidade individual, abrimos espaço para a instabilidade criativa do emaranhadoonde a segurança não vem da solidez do eu, mas da confiança nas tramas que nos sustentam.

Quando o Eu se lembra que é território, a regulação não se dá apenas dentro da pele — transpira, escorre, transborda e sintoniza. Reverbera. Ecoa. Enlaça. A co-regulação ecológica devolve-nos ao reconhecimento de que o nosso sistema nervoso nunca foi um sistema fechado. Sempre esteve em sintonia com o que cresce, canta e morre ao nosso redor. E talvez o cuidado, aqui, não seja um ato de emenda individual, mas um gesto de reencontro. Um pulsar rítmico que nos permite deixar de carregar sozinhos aquilo que nunca foi só nossoos lutos de linhas partidas, as dores do tempo, as memórias das águas. Ser território é deixar que as fronteiras do “eu” se tornem permeáveis o suficiente para a vida entrar e sair, como deve ser.

Como sempre foi. Assim só por estar.

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{Ecopsicologia}

🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência. 

Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.