Paisagens Afectivas Internas e Externas

O que são as Paisagens Afectivas Internas e Externas? Porque importam?

É um acto revolucionário devolver afecto e fascínio ao território vivo que sempre nos sustentou.
– Sofia Batalha

Conceito de Paisagem

A palavra paisagem deriva do francês paysage, com origem na palavra “pays”, que pode ser definido, de forma simplificada, como regiões de organização e ocupação humana. No ocidente moderno, a paisagem é “aquilo que se consegue observar de um determinado lugar,” ou um “espaço geográfico de um determinado tipo.” Pode ser associada a tudo o que vemos. Ao incluir o território geográfico abre-se à abrangente percepção pelos sentidos. A paisagem geográfica pode ser definida como todos os elementos do espaço — tudo que os nossos sentidos conseguem perceber e interpretar. Neste contexto a percepção da paisagem está aparentemente limitada às percepções externas, não sendo idêntica para todos, já que varia conforme o observador. 

Não quero deixar de referir os conceitos oficiais de paisagem e território dadas pelo Glossário do Sistema de Informação da Convenção do Conselho da Europa sobre a Paisagem:

  • Território – termo utilizado quando o enfoque recai sobre o modo como as pessoas se apropriaram de um espaço específico através de sistemas sociais legais. Os territórios são geralmente extensos e delineados com precisão, em particular dentro de limites administrativos ou políticos, por vezes apoiados por elementos naturais (cordilheiras, rios).

  • Paisagem – segundo o estabelecido na Convenção, designa uma parte do território, tal como é apreendida pelas populações, cujo carácter resulta da ação e da interação de fatores naturais e humanos.

Notemos as noções de “apropriação legal” e a “delimitação precisa” de limites administrativos e políticos que tende a ignorar as características ecossistémicas do território vivo.

Neste quadro conceptual, hierarquicamente antropocêntrico, o território nunca é soberano ou válido por si, sendo apenas um recurso e instrumento a ser organizado dentro e para a estrutura legal culturalesta definição oficial é um sintoma e ao mesmo tempo perpetua as causas de separação afectiva (um corte cognitivo que silencia o emaranhamento biológico e ecológico).

Neste contexto cultural, a noção de paisagem fala das relações entre o ser humano e a natureza, tanto espaciais como temporais. Na ciência ocidental, a paisagem é o resultado de inter-relações entre o natural e o humano, à medida que a natureza é apropriada e gerida pelo ser humanohavendo paisagens naturais, com pouca ou nenhuma intervenção humana, e culturais, resultantes da transformação da atividade humana. A paisagem natural é a combinação dos elementos de geologia, geomorfologia, vegetação, rios e lagos e outros elementos naturais. A paisagem cultural reporta a todas as modificações físicas feitas pelo ser humano nos espaços urbano e rural. 

De notar como a psique-não-autóctone moderna ocidentaluma forma de pensar e sentir genericamente alheada, que se acredita independente e separada, tendo dificuldade em articular a presença e pertença — interpreta a paisagem como algo externo e principalmente visual, excluindo o inevitável entrelaçamento vivo e ecossistémico. Apagando as inter-relações dos múltiplos sistemas vivos que se desdobram em cada paisagem, incluindo os humanos. Neste contexto limitado, não há identificação ou pertença visceral, sensação de parentesco, e muito menos integração responsável pelos não-humanos numa ecologia partilhada. É uma designação delineada pela lente mecanicista, hierárquica e antropocêntrica, onde paisagem é apenas um cenário à espera de ser gerido, limpo e ordenado, mantido e possuído pelo humano. Deixando de fora os subjetivos e poéticos afectos, assim como toda a porosidade biológica de corpo-no-lugar.

Apesar de sermos uma espécie de nómadas mamíferos, que desde há milénios calcorreiam o planeta, a psique-não-autóctone moderna ocidental ocorre num contexto de rapidez da viagem e controle do território. Numa cristalização de identidade que dogmatiza os Outros, pela constante desnaturalização e desumanização, na expectativa de cumprir essencialismos abstractos, universais e estáveiscom a iliteracia da impermanência o quadro de referência torna-se a abstração, pois deixamos de saber ser paisagem. Enquanto as cosmo-visões e metafísicas indígenas, lentas e de relação, são sempre ecologicamente situadas.

As ideias de paisagem indígenas são vivas e valorizadas por múltiplas relações recíprocas e de parentesco, cíclicas e duradouras. Têm a ver com relação e não com posse. São territórios que possuem um valor cultural, espiritual, mítico e histórico, frequentemente moldados por milhares de anos de utilização tradicional da terra e de gestão ecológica, sendo vitais para a preservação da biodiversidade e a manutenção do património indígena. 

Os Afectos

Os conceitos ocidentais de paisagem ignoram os afectos, pois para a ciência ser factual tem de se valorizar como neutra. Antes de avançar para as paisagens internas é preciso abrirmo-nos aos afetos. Os afectos afectam, estimulam e penetram, causando emoções, boas ou más. Por seu lado, a emoção é a resposta ao afeto, seja causado por algo interno ou externo, correspondendo a respostas corporais a cada situação vivenciada — a emoção é como uma bússola. Tudo isto acontece constantemente ao mesmo tempo, pelo corpo bússola, que envolve a psique cartografia, em ressonância aos processos vivos de cada lugar.

Transculturalmente sabemos que as caraterísticas das paisagens e lugares influenciam as emoções das pessoas, tanto individual como colectivamente. Seja de forma positiva ou negativa, em aglomerados afetivos, carregados de reações semelhantes — tal como as emoções positivas a paisagens verdejantes e vivas ou as emoções negativas às paisagens em ruínas, feias, contaminadas ou destruídas.

Paisagem Interna

Chegamos à paisagem interna, reflectida pela emoção e interopção, nutrida pela memória e consciência tanto individual como colectiva, assim como pelo contexto envolvente. É impermanente e varia em função do estado de sono/vigília, da emoção, do interesse de cada indivíduo.

As paisagens internas são imaginais, metafóricas, profundamente simbólicas, subjectivas e míticas. Relacionam a poética intimidade da psique e do corpo com o primordial inconsciente natural. São paisagens tanto pessoais como colectivas, que usam a linguagem inata da biologia, ecossistema e memória para recriar paisagens internamente. Esta construção interna reflecte estados de espírito, sendo muito menos independentes das sazonalidades e topografias exteriores do que é normalmente considerado no ocidente. Estas são paisagens emocionais familiares, onde residimos, apesar de poderem ser sempre surpreendentes e sujeitas a mudanças.

Ao contrário da percepção hiper-individualista da psique moderna, estas paisagens internas não são, nunca foram, separadas das paisagens externas.

A própria identidade está relacionada com o carácter e as características tangíveis e intangíveis da paisagem que moldam o sentimento de pertença. É o somatório das diferentes camadas vivas baseados no território, nos elementos culturais, naturais, da sua estrutura e sazonalidade, do particular ao geral.

Paisagens Afectivas Internas e Externas

As Paisagens Afectivas Internas e Externas reflectem estas relações múltiplas, porosas e viscerais, nunca separáveis, nunca totalmente racionais e muito menos lógicas.

Aqui os potentes recursos simbólicos da imaginação, dos mitos e dos sonhos são fundamentais. Seguindo a pista dos afectos, seguimos os rastos internos e externos, dos lugares vivos, soberanos e complexos. Como mamíferos, parentes inatos de corpo e lugar, os nossos sonhos são também os da paisagem onde nos encontramos. Apesar das ilusões modernas de separação do indivíduo, somos intrinsecamente pertencentes, ligados, dependentes e imanentes à paisagem que nos envolve, é simplesmente a realidade biológica e ecossistémica.

Sempre fomos, individual e colectivamente, indissociáveis do parentesco não-humano que nos enlaça.

O voltar a cerzir relação com a paisagem é assumi-la como metamorfa em si, como verbo primordial de espaço-tempo de desdobramento da vida e não apenas como referência de orientação, localização ou posse humana. Remendamos as relações entre as paisagens espirituais, mentais, emocionais, íntimas e corporais através das paisagens míticas, imaginais, oníricas, simbólicas e metafóricas, que nos unificam aos deuses vivos dos lugares, os que se encontram no ecossistema, na topografia, nas águas e nos ventos. Recordamos o território tão impermanente como eterno, sempre múltiplo, ecossistémico e soberano, onde, através da interligação de múltiplos processos, a vida se desenrola. As paisagens como vivas, que albergam as histórias do mundo — histórias que não são sobre nós individualmente, mas que nos envolvem e atravessam visceralmente. Aqui, aprendemos o valor do paradoxo na memória e registo cultural das histórias dos lugares.

O resgate do afecto nesta relação é essencial para nomear e valorizar a inteligência emocional e instintiva na relação tanto com a inspiração e encantamento, como com a destruição sistémica — não lhe somos imunes por mais que tentemos fugir por abstração, dissociação ou vícios que nos adormecem. Voltar à relação implica caminhar com o luto e encantamento desta sabedoria primeva.

Nesta relação porosa e visceral não somos os mestres, mas testemunhas guardiãs, observadores e aprendizes da grande história da vidanão somos os gestores ou proprietários da paisagem, mas parentes íntimos que podem zelar pela biodiversidade. Aqui sabemos que as nossas ideias e sentires são também corpo de paisagem, nunca separáveis. Sempre fomos paisagem, um dos nós da grande teia do lugar, em ligação e afinidade com tudo o resto.

Intencionalmente oferecemos os nossos talentos ao inerente e complexo metabolismo bio-inteligente das paisagens, lugares e territórios. 

🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência. 

Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.