E se todas as florestas fossem terapêuticas?

 

  • E se não precisássemos de reconhecimento burocrático de instituições de como uma Floresta é “terapêutica”?
  • E se a Floresta fosse intrinsecamente válida e sagrada por si mesma, como entidade viva, complexa e soberana; sem precisar de ser nomeada como recurso terapêutico ou sem ter de apresentar provas do seu valor?
  • Mesmo não sendo quantificadamente útil, e se a Floresta for valiosa por tudo o que nos dá, como o ar, a água ou a biodiversidade?
  • E se a “terapia da natureza” fosse muito mais que quantificar o tempo de presença? E se fosse resignificar o que é a natureza?

Num artigo anterior trouxe algumas questões que se enlaçam com o tema da Mata do Bussaco ter sido nomeada como a primeira floresta terapêutica da Península Ibérica:

  • Como nós, na cultura tecno-capitalista do norte global, podemos voltar a relacionar-nos com a “natureza” sem repetir os padrões extractivistas e profundamente irresponsáveis que nos têm caracterizado culturalmente? Como podemos recordar como reciprocar em vez de só retirar?
  • Como a terapia na “natureza” pode ser consciente de como facilmente exila, limita e mutila a riqueza do mais-que-humano à procura incessante de bem-estar e significados exclusivamente individualistas e antropocêntricos?
  • Como podemos abrir a narrativa terapêutica ao contexto ecossistémico vivo e soberano?
  • Como tomar consciência das hierarquias internas que evitam a relação?

  • Como é que a presença em locais controlados e seguros, mas ainda assim considerados “naturais e terapêuticos”, limita a maturação ao pensamento complexo e paradoxo.

Não descartando todo o trabalho da fundação na gestão, manutenção e sustentação da Mata do Bussaco; assim como o consequente efeito secundário da preservação deste espaço natural, que para além de ser uma “floresta extraordinária, com propriedades botânicas e culturais únicas,” ser também agora certificada pelo Gabinete Internacional de Certificação de Florestas Terapêuticas para a prática de Terapia de Floresta. Se o efeito secundário for a preservação deste lugar vivo, parabéns.

No entanto, não posso deixar de notar que a floresta não mudou de categoria, continuando a ser, apenas e só, recurso. Neste caso um refúgio, um remédio para aliviar o “déficit de natureza.” Como refiro no artigo anterior, à medida que aprendemos a quantificar e a qualificar o efeito da natureza na nossa psique, a receita da natureza tornou-se menos uma metáfora do que uma realidade clínica, afastando-nos da visceralidade imanente e complexa. A aparente “cura para o distúrbio de défice de natureza” foi descoberta, através de breves encontros com espaços verdes bem cuidados. Vários autores criticam a medicalização da natureza, salientando que não aplicamos a abordagem dose-resposta às nossas redes humanas: “Uma dose não é uma relação. Não se trata de coexistência. Não tem a ver com interconexão”.

De facto, reduzir o complexo mundo vivo a um recurso natural para a saúde mental pode ser um mau remédio para a própria natureza. Birgitta Gatersleben, psicóloga ambiental da Universidade de Surrey, em Inglaterra, observa que a maioria dos estudos sobre os efeitos terapêuticos da natureza apresentam “ambientes agradáveis, semelhantes a parques, abertos, quase sempre verdes e quase sempre ensolarados”. De facto, se olharmos atentamente para a paisagem verde e agradável que domina a literatura da psicologia ambiental, é difícil ignorar a semelhança com o ecossistema planetário problemático que conhecemos hoje: biodiversidade reduzida e simplificada; animais grandes ou perigosos geralmente ausentes; e a natureza cada vez mais frequentemente vista no YouTube ou no National Geographic Channel (ver mais aqui.)

Este discernimento critico é tão rigoroso como desconcertante, pois como refiro num outro artigo: “O paradoxo poético é que a natureza em nós em ressonância directa com os lugares ecologicamente vivos e diversos nos traz realmente a esse lugar de paz e regeneração, mesmo que as nossas premissas sejam extractivistas, antropocêntricas ou exclusivamente egocêntricas. Mesmo confundindo direitos e responsabilidades.”

Que possamos celebrar e proteger a Mata do Bussaco, e todas as matas e florestas, sem precisar de os aprisionar e superficializar a uma utilidade exclusivamente humana. O trabalho de reciprocidade implica levantar a pele da hierarquia humana, do utilitarismo e da quantificação, que previnem a relação visceral com lugares vivos e soberanos. Claro que é uma pele espessa a que nos sussurra que a natureza é monstruosa, mas se tivermos coragem de nos entregar encontramos benevolência, carinho e vida vibrante em qualquer lugar.

Que sejamos responsáveis na relação e alarguemos o conceito de “terapia de floresta” para além do nosso bem-estar humano imediato. O que podemos oferecer de volta?

🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência. 

Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.