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Síndrome de Mudança da Linha de Base Psicológica
{diagnóstico do luto civilizacional ao trauma da desconexão contínua}
Em termos ecológicos, o Síndrome de Mudança da Linha Base (baseline shifting syndrome) refere-se a como cada geração redefine o «normal» com base no seu contexto cada vez mais degradado. Costumava haver lobos e florestas aqui, mas só me lembro de centros comerciais. Assim, a memória da vida e da sua diversidade vai-se desvanecendo. E o mesmo acontece com a capacidade de lamentar, relacionar e empatizar.


Neste artigo proponho entrelaçar a Síndrome de Mudança da Linha Base com a psicologia, não de um ponto de vista clínico, mas como testemunho da funda amnésia relacional. Quero aproveitar este conceito ecológico para nomear a recalibração sistémica do «normal» em resposta à erosão e contaminação prolongadas, exílio, opressão, desconexão e trauma; especialmente sob o feitiço do metabolismo da modernidade: separação, domínio e controlo.
Ao trazermos este conceito para o psicológico, notamos como cada geração herda não apenas um mundo ecologicamente diminuído, mas também um sentido psicologicamente atrofiado de como se relacionar. A «linha de base» da psique em termos de relações continua a estreitar-se: menos afinidade e sintonia, mais isolamento. Menos sentido da terra, mais gestão hiper-individual da dor. Orfandade colectiva num mundo de monocultura.
Por esta erosão constante e vazio de relações, a psique moderna vicia-se na ilusão da própria centralidade, em círculos viciosos de: excepcionalismo internalizado (conserto-me sozinho); empatia performativa (sinalizar sem sentir); controle hiper-vigilante (domínio mascarado como limites); otimização do “eu” (marca como cura). É claro que tudo isto é alimentado pelo metabolismo da própria modernidade. Como recorda o livro Hospicing Modernity, a modernidade não prejudica apenas o mundo, ensina-nos como não sentir a dor, coloniza o afeto, ensina a rejeitar o desconforto, corta raízes e valoriza a certeza em detrimento do parentesco. Vanessa Machado de Oliveira sustenta que a doença da separabilidade não é somente sistémica, mas internalizada e incorporada.
Quando a teia psico-eco-relacional é esgaçada, o que se torna a nova «linha de base» psicológica é a transacionalidade em vez de reciprocidade; gerir situações em vez de co-tecer; «autorregulação» em vez de co-regulação; hiper-vigilância das emoções em vez de dançar com elas. Adaptamo-nos à desconexão, entorpecendo a nossa capacidade de interdependência, normalizando a separação, isolamento, apatia e dormência.
E isto é sobrevivência ao vazio, numa adaptação a ecologias relacionais corroídas, erradamente reconhecidas como saúde ou progresso. Limitamos defensivamente a perceção para evitar a sobrecarga de perdas excessivas, numa recalibração auto-protetora da psique ao trauma da desconexão contínua.
A psicologia moderna enfrenta dificuldades, não porque careça de cuidado, mas porque o seu cuidado muitas vezes gira em torno do eu, em torno do trauma como ruptura individual, em torno da cura como funcionalidade. Não tem espaço para metabolizar o luto relacional porque não se lembra do entrelaçamento (ao lugar, à ecologia, ao não-humano).
E se abríssemos espaço a reconhecer: «Não somos mal-adaptados. Estamos a metabolizar o luto de um mundo inviável. E as nossas psiques tentam sobreviver à fome relacional.» Permitimos que esta síndrome não seja uma patologia a ser corrigida, mas um sintoma de uma ecologia relacional que precisa de cerimónia e cuidado. Reconhecendo que o metabolismo cultural está demasiado esgotado para suportar a coexistência e o real emaranhamento, sendo urgente reestruturar o parentesco como prática diária e não apenas como premissa abstracta.
E se as nossas psiques não estivessem tão fragmentadas assim, se somente recusassem a normalizar o rompimento da teia da vida? E se parássemos de enquadrar a perda do parentesco como “sintomas de saúde mental” e, em vez disso, honrássemos a erosão relacional como luto?
Então, é importante que paremos de recompensar as nossas psiques modernas por se adaptarem ao isolamento. Podemos parar de fingir que otimizamos o nosso caminho de volta ao parentesco. A Síndrome de Mudança da Linha de Base Psicológica oferece um diagnóstico do luto civilizacional.
Que este seja o lugar onde a psique deixa de ser clinicamente diagnosticada por se lembrar. Onde o tremor é sabedoria e a depressão é protesto. A Síndrome de Mudança da Linha de Base Psicológica não é uma falha de memória, mas uma dor no coração demasiado grande para carregar na consciência.
A psique não chora porque está partida, mas porque nunca foi destinada a sobreviver sozinha e separada da diversidade, da alteridade, tanto humana como não-humana. Não existe pertença fora da teia. Porque a necessidade de afinidade, sintonização e relação é a recusa sagrada de nos adaptarmos à desconexão. Porque estamos de luto pelas relações mutiladas, esgaçadas, silenciadas e sistematicamente oprimidas.
A psique, afinal, sempre fez parte da grande família dos seres, sempre procurou conexão e parentesco. E grita, sim, porque se lembra de não estar tão sozinha. A dor não é a ferida, é a memória. Não de um mundo perfeito, nem estável ou seguro, mas vivo e entrelaçado, onde nos podíamos aninhar com o vento, entre os ossos ancestrais e todos os parentes. Não é nostalgia nem sentimentalismo, é resistência à normalização da insensibilidade. Esta é a recusa sagrada de esquecer a ruptura que nos habita, na modernidade que continua a sussurrar: “Esquece. Adapta-te. Anestesia-te. Sê produtivo.”
O corpo diz: “Não. Eu lembro-me.” A dor que é memória sagrada, do conhecimento celular profundo, do entrelaçamento e parentesco com os lugares que sempre fomos.

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