TEMPO DE LEITURA – 6 MINUTOS

Rede de Indra & Rede de Arrasto

O Fim da Memória no Oceano e no Cosmos

Este é um lamento-memória, uma reverberação que passa pelos cardumes perdidos, as redes rasgadas do ser, até aos fios quânticos da própria criação.

Daqui, deste lugar de ossos contaminados e marés esquecidas, algo se desfaz. Os peixes já não dançam os antigos caminhos do alimento e as mães do oceano já não sabem onde depositar os seus ovos. A cultura aquática, o saber vivido, partilhado, transmitido por escamas, correntes e luas, foi interrompida, desfiada pelo arrasto contínuo das redes humanas. Porque a sobrepesca não só leva corpos, mas apaga cartografias de relação. Apaga o saber que conhece o lugar, desvanece o tempo certo, ofusca a memória. No fundo das águas, as memórias dos peixes dissolvem-se, pois a sobrepesca, como descrevem Wilson e Giske (2023), desmantela não só populações, mas culturas piscícolas inteiras.

Tal como os humanos, os peixes não nascem a saber, aprendem uns com os outros onde se alimentar, quando migrar, como escapar e onde depositar os ovos.

A pesca excessiva remove os mais velhos, os portadores de saberes. E quando estes corpos desaparecem, o que se esvai não é apenas biomassa, é memória, cultura e orientação. Quando os mais velhos desaparecem, o saber afunda-se, silencia-se, e o grupo entra em colapso, porque a cultura não vive no ar, vive em corpos, em rotas partilhadas e histórias nadadas. Quando extraímos os corpos, silenciamos os contos e esquecemos os mapas. A espécie perde o caminho e o lugar, perde-se no tempo. Um vazio silencioso abre-se no oceano. 

Isto não é apenas biologia, é ontologia e cosmologia. A física relacional, como desenhada por Zaghi nos seus estudos sobre a Rede de Indra, apontando que o universo é constituído por relações, e não por entidades isoladas. O que existe não são coisas, mas vínculos, nós e teias. A criação é uma rede viva e cortar os fios é desfiar o real. No campo da física quântica, abordagens como a de Zaghi (2023; 2025) ressoam com esta constatação ao nível mais fundamental da realidade, o universo é constituído por relações, não por coisas. Através da metáfora da Rede de Indra, um entrelaçamento infinito de joias espelhadas, somos lembrados de que cada ser, cada vibração, é uma relação que sustém o todo. Cortar as relações, com o mar, com os ancestrais, com os peixes, com os ritmos da Terra, não é só uma perda cultural. É um colapso cosmológico.

Desfazer a relação é desfazer a criação.

Na modernidade ocidental, também nos esquecemos quando pousar os pés e onde plantar o coração. A cultura da separação ensinou-nos a ver o mundo como matéria morta para uso, não como parentesco vivo para cuidado. Perdemos a memória da relação fundamental e recriamos uma cultura de separação e violência. A nossa fome não é apenas de alimento, mas de pertença. Daqui, deste lugar, a memória das raízes fundas, eclipsa-se, esvai-se entre os dedos como água. Os pés não encontram as histórias antigas e as mãos deixaram de colher o fruto. A barriga ronca com fome. Fome funda do que se perdeu. Porque o alimento é também conto e canto da raiz. 

Esta fome é eco daquilo que perdemos. Mas também é guia. Daqui, deste lugar de ossos contaminados, há uma busca, um tatear como quem não sabe o caminho há muito tempo. 

Quando a bússola relacional se estilhaça surge a confusão entre histórias certas e erradas. Tyson Yunkaporta fala disto com a clareza crua, a wrong story é uma história fora de lugar, contada com pressa, medo e controle, porque já não se está em relação com o contexto que a podia sustentar. Pois quando a memória relacional se dissolve, seja nos oceanos ou nas culturas humanas, instala-se um vácuo onde outrora havia orientação. Tyson Yunkaporta nomeia o aprisionamento na wrong story, a história errada. Esta história não é simplesmente falsa, mas deslocada, contada fora de tempo e de lugar, alimentada por medo e urgência. É o tipo de narrativa que emerge quando já não se sabe de onde se veio nem com quem se caminha, quando o mapa vivo, feito de corpos, ciclos, paisagens e vínculos, se perdeu. A wrong story corre em urgência, grita perdida e com medo, aponta culpados e oferece soluções rápidas. Tenta substituir o tecido da relação por estruturas de sentido artificial, lineares, muitas vezes violentas. E assim, na ausência da right story, a que se conta devagar, com escuta, em relação, proliferam narrativas que parecem fortes, mas que são frágeis, por não serem ancoradas em chão vivo. Esgaçam a vida.

E à medida que se desfiam a teias de relação, nos oceanos, comunidades ou corpos, instala-se não apenas o vazio, mas a lógica da obediência. Da confusão e apelo a seguir vozes assertivas e violentas, pela quase extinção das que conheciam as complexidades do lugar e das relações. A extinção e a monocultura abrem caminho para o autoritarismo. Onde antes havia reciprocidade, presença, escuta e cuidado, emerge rigidez que exige submissão. A amnésia relacional profunda que desestrutura os cardumes, ao apagar as rotas ancestrais de alimentação e reprodução, ecoa nas estruturas sociais humanas como autoritarismo e fascismo, expressões extremas da separabilidade moderna. Nestes sistemas, o vínculo é substituído pelo comando, o cuidado pela crueldade, a diferença pela exclusão. A relação, que antes sustentava mundos, é transformada em ameaça a ser controlada. Assim, o corte relacional das águas, nas culturas dos peixes desfeitas pela sobrepesca, reverbera em terra firme como regimes de poder que instrumentalizam corpos e sufocam a vida. O fascismo, não aparece do nada, pois brota do solo envenenado pela perda da escuta, pela recusa da interdependência e negação da teia.

Silêncio.

Como escutar de novo?

O abraço guia e a fome também.
Aprendemos a estar com o que se perdeu. Estar com o colapso como quem cuida de uma fogueira quase extinta, não para reacender o mesmo fogo, mas para aquecer o que pode ainda germinar. Porque, afinal, o mapa, eram outros corpos. Cartografias respiradas, de mãos dadas, em chão pisado por muitos pés. O caminho, a viagem, perdeu os destinos, ao esquecer-se da raiz. Que o sonhemos de novo, não sozinhas, mas em rede.

Consegues escutar o chão a latejar?
Ele clama a que te recordes, em compromisso e escuta.

Referências:

Ler artigos relacionados

{Ecopsicologia}

🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência. 

Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.