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O Torpor de Ser “Boa Pessoa”

Quando, em alturas de crise, nos aventuramos nos limiares do saber, instintivamente procurando outras referências que nos sustenham, à partida somos levados a nos abrir a outras formas de ser, pensar, sentir e fazer. Curiosamente, o desconforto de “não-saber” não nos deixa saborear o processo como um descobrir em integridade, deixando-nos fragmentados, ansiosos e doridos; em dissonância cognitiva onde inocentemente exigimos que as referências e paradigmas conhecidos ainda funcionem.

Principalmente quando sentimos que outras formas de “ser mundo” nos confrontam directamente, escarafunchando e expondo a nossa ignorância e suposta inocência. Reagimos com dor e esperneamos em defesa de sermos boas pessoas, pois assumimos que temos de arcar com a culpa de uma cultura inteira (tal é o peso incorporado do pecado individual). 

Trazemos dentro rígidos quadros de referência sobre o que é real, ou verdade–não são apenas nossos, sendo colectivos e intergeracionais. Carregamos pesadas e invisíveis molduras, como a verdade ela própria, absorvendo e retorcendo outros paradigmas em linhas inteligíveis para nós. Todos o fazemos e a todo o momento ocorrem processos de abdução, tradução e interpretação, convertendo tudo aos nossos quadros de referência familiares. A dissonância é faze-lo num mundo impermanente mediante uma lógica de dogmas rígidos.

Acontece que, os quadros de referência conhecidos não são nem os melhores, nem os mais certos e muito menos os mais corretos. São apenas a norma e o dogma invisível. Ora, segundo a lógica moderna superficial, tudo pode ser explicado por métodos e técnicas, basta praticarmos o bastante; além disso, a forma de conhecer moderna considera-se hegemónica, sendo naturalmente superior moral, racional, tecnológica e filosoficamente. Nesta lógica causal e linear, basta encontrar a nossa missão, significado ou propósito que tudo ficará claro, podemos descansar e pertencer sem tensão. O que é perigoso num mundo colectivo, complexo, impermanente e onde não estamos no centro.

Então, quando nos aventuramos no limiar do “não-saber”, temos muita dificuldade em largar os caminhos e linguagens conhecidas da modernidade e enveredar por trilhos escondidos e não traduzíveis nas nossas lógicas domesticadas e contemporâneas. Trilhos animistas onde podemos humildemente estar em relação, mas não em controle; caminhos ricos e férteis onde nada é apenas sobre nós. Caminhos secundários e escondidos onde circulamos sobre as ruínas que quem achavamos sermos.

Ficamos perdidos e debatemo-nos com o que a modernidade nos ensinou a perguntar: então e a prática? Ficando à espera que a prática –que deve ser realmente praticada, experienciada, treinada e reiterada uma e outra vez– nos dê as respostas ou soluções. Mas a prática não nos muda os quadros de referência, não nos faz ver as lentes por onde vemos o mundo e não desfaz as perversas molduras da normalidade.

De modo geral, sinto ser quase impossível abanar-nos da nossa inocência e ignorância auto-indulgente, assentes nas premissas de uma cultura que se auto-afirma superior. A indústria do bem-estar com todos os métodos e receitas de auto-ajuda, assim como as perversas ideações de auto-desenvolvimento assentes somente no limitado modelo psicológico ocidental –que quando traz outras referências, é em modo apropriação cultural, espremendo e asfixiando outros paradigmas para poderem ser usados linear e irresponsavelmente–, tornam muito difícil tirar-nos do nosso torpor de “sermos boas pessoas.” Além disso, temos a cruel indústria do entretenimento que tudo permeia –a própria aprendizagem como entretenimento, onde tudo tem de ser leve, mastigado, divertido ou inspirador–, que a par da veloz economia da atenção, faz com que facilmente sigamos as linhas do extractivismo cognitivo: sempre a procurar respostas que não nos ponham muito em causa, mas que nos deem bem-estar rápido e indolor; sem que tenhamos de investir demasiada atenção ou responsabilidade no processo, porque afinal seguimos múltiplos interesses ao mesmo tempo, sem vagar para realmente integrar ou incorporar nada.

{Des}Formar

Muitas pessoas que vêm estudar comigo sentem-se atraídas pela linguagem, que sentem ser a mesma que conhecem, mas facilmente ficam desmotivadas ou fragmentadas com o processo emergente das (des)formações.

Pois abrem-se trilhos cheios de silvas e urtigas, dissonâncias e rasgões, que pretendem abanar-nos das violentas ideações modernas de hiper-individualismo, antropocentrismo, transcendência ou universalismo; perspectivas que nos toldam e limitam severamente na capacidade de relação recíproca e responsável, fechando-nos em processos profundamente extractivistas. Não é nem rápido, indolor, nem inspirador, nem entretenimento, nem performativo. É duro e cru. É lento, pois não há resultados ou soluções velozes. Mas é também uma peregrinação devocional para voltar.

Como (des)formadora, estou sempre à procura do ponto ideal entre “conceitos teóricos” e prática ou experiência, embora considere esta polarização uma falsa dicotomia. Há uma constante prática em desfazer e refazer conceitos aparentemente teóricos, assim como uma mesma prática é radicalmente diferente quando enformada por teorias diferentes. A constante exigência e velocidade de só querer a prática, é inadvertidamente solucionista e extractivista, pois o “fazer” sem qualquer tipo de estímulo ou reformulação das referências conceptuais da própria prática, facilmente leva à apropriação cultural e à replicação dos mesmo algoritmos culturais invisíveis, uma e outra vez. Onde apenas nos ficamos a sentir bem naquele momento, mas onde não houve realmente aprendizagem, apenas conclusões individualistas que nos mantêm cativos das molduras invisíveis.

Esta não é uma crítica a ninguém, não é uma culpa ou um erro, é apenas uma observação de anos e anos, de movimentos que todos nós replicamos. É simplesmente um olhar cru sobre o metabolismo cultural, o qual é o nosso quadro de referência, o ponto de partida para qualquer coisa. Todos temos profundas e complexas camadas de dogmas que moldam como participamos das coisas, engrenagens que ajustam e esculpem o que é possível ver, sentir e relacionar. Há muitas armadilhas pelo caminho, pois o algoritmo capitalista moderno é insidioso e replica-se muito facilmente, mesmo quando achávamos já estar fora desse legado. 

No meio destes processos, e num mundo em profunda e dolorosa transformação, passando pelo constante ecocídio e genocídio, levantar as peles culturais deixa-nos vulneráveis e perdidos. Que possamos acompanhar-nos neste processo dissonante e doloroso, que nos possamos dar colo colectivamente, rir das nossas patetices excepcionalistas, e lentamente re-aprender a relacionar recíproca e responsavelmente. Que possamos, em conjunto, remendar a teia, não por nós ou para nós, mas pela vida. Somos só e apenas sementes e precisamos mesmo de rasgar as cascas que nos aprisionam.

{imagem: The Fall of Man by Lucas Cranach, the Elder. Original public domain image from Art Institute of Chicago}

🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência. 

Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.