Cartografia de Parentesco

 

Ousamos imaginar-nos como interdependentes?
A identidade moderna não nos permite aceder ao génio selvagem, ou à sabedoria do coração, ou mesmo à intuição. Então, é importante desconstruir o que é a “identidade moderna,” pois, além de ser composta por comportamentos adquiridos, referimo-nos a ela como a sendo a normalidade, pois é invisível para nós. Facilmente dizemos: “o ser humano é assim!” No entanto, como referem as culturas indígenas e contextuais ou os povos do sul global, a cultura moderna tem as suas próprias premissas e crenças que não são, nunca foram, universais.

A cultura moderna tem o seu posicionamento e tipo de percepção, mas coloca-se como se fosse a norma de toda a humanidade.

Por isso é tão importante destrinçar e abrir espaço pelo coração e diversas outras formas de ser e o perceber mundo. A questão é que muitas vezes o que chamamos de a “nossa personalidade,” quem dizemos ser, são características culturais e não necessariamente premissas, singulares, únicas, criativas ou destrutivas de cada um de nós.

– do livro O Santuário – Ensaios sobre Eco-Mitologia

Entre 2019 e 2022 escrevi 4 livros cujo chão é o meu luto e consequente procura de outras referências de como ser humano:

  • Iniciei a jornada com o Lugar Feliz, sobre a atenção em devoção a várias paisagens.
  • A seguir continuei a aprofundar o caminho com o Pequeno Livro da Imanência, onde me debruço sobre algumas das diferenças entre o metabolismo psicológico indígena (extinto neste território, mas ainda em reverberação na memória funda do corpo) e os dogmas dominantes. Neste livro há toda uma secção sobre a forma de ver o mundo indígena.
  • No livro seguinte, os Contos da Serpente e da Lua, foi uma viagem intencional pelo corpo, território e contos, um coser de vários fios dentro da mesma linha de resgate.
  • O livro d’O Santuário vai ainda mais fundo nesta peregrinação paradoxal, abrindo fissuras e brechas na psique moderna. Neste livro dedico todo um capítulo a aprofundar as armadilhas da modernidade que não nos permitem relacionar mais profunda e vastamente, em humildade e responsabilidade.
  • No curso de Introdução à Ecopsicologia na Escola Transpessoal, curso que criei de base, há uma sessão intitulada Armadilhas da Modernidade, e todo o curriculum proposto segue a linha do (a)braço crítico da Ecopsicologia.

Muitas vezes confundida como uma teia de tensão e culpa (estes são apenas sintomas de dissonância cognitiva da cultura dominante que se acha separada), a procura de outras formas de sermos humanos, é, na verdade, um abrir à diversidade de quem podemos ser. Escutando outras culturas que se entrelaçam com a(s) realidade(s) de forma bem distinta da nossa. Porque resgatar o afecto relacional vai contra o grão do hiper-individualismo e não tem nada que ver com apropriar cerimónias de culturas nativas. Este é um trabalho de responsabilidade, um labor de entrega eco-mítica, para voltar à inteligência sensual, erótica, ecológica, sagrada, sensorial e sensível. Uma viagem tão dolorosa como generosa, em exuberância imanente.

Na constante procura de outras peles e ossos humanos encontrei, recentemente, outras valiosas referências que traduzi para este artigo. Trata-se do Mapa da visão do mundo para reequilibrar os sistemas de vida no planeta Terra, como lhe chamei Cartografia de Parentesco. São 28 (neste mapa, expandidos para 50) preceitos, na sua maioria originalmente publicados em The Red Road por Four Arrows e apresentada na UNGA78 com Darcia Narvaez. Revisto em colaboração no verão de 2024, após a publicação do livro Restoring Kinship Worldview. Podem ver a versão original aqui.

 

Referências

  • WorldviewLiteracy.org
  • KindredWorld.org

Mapa da visão do mundo para reequilibrar os sistemas de vida no planeta Terra

Manifestações comuns de parentesco/visão de mundo indígena

Manifestações comuns da visão de mundo dominante

Igualitária

Hierarquia rígida

Coragem e confiança destemida no universo

Pensamentos e comportamentos baseados no medo

Vida com objectivos sociais

Viver sem um objetivo social forte

Ênfase no bem-estar da comunidade

Foco no eu e no ganho pessoal

Respeito pelos vários papéis e pela fluidez dos géneros

Estereótipos de género rígidos e discriminatórios

Ênfase nos valores intangíveis

Ênfase nas posses

A Terra e todos os sistemas são vivos e amorosos

A Terra como uma “coisa” sem amor

Ênfase na sabedoria do coração

Ênfase no intelecto

Competição para desenvolver o potencial positivo

Competição para se sentir superior

Empático

Falta de empatia

Bio-cêntrico

Antropocêntrico

As palavras são sagradas, a verdade é essencial

Palavras utilizadas para enganar o próprio ou os outros

A verdade é considerada multifacetada, aceitando o misterioso

A verdade é considerada absoluta, intolerante à ambiguidade

Fronteiras flexíveis e sistemas interligados

Fronteiras rígidas e sistemas fragmentados

Utilização regular de consciência alternativa

Desconhecimento de consciências alternativas

Reconhecimento do espírito em todos

Percepção de um espírito desvinculado no todo

Ênfase na interconexão holística

Desconsideração da interconexão holística

Elevado envolvimento interpessoal, contacto

Contacto mínimo com os outros

Inseparabilidade do conhecimento e da ação

Ênfase na teoria e na retórica

Resistência ao autoritarismo

Aceitação do autoritarismo

O tempo é cíclico, permeável e fluido

Tempo como linear

Procura da dualidade complementar

Pensamento dualista

Intolerância à injustiça

Aceitação da injustiça

Ênfase na responsabilidade

Ênfase nos direitos

A generosidade é um modo de vida

Acumulação como modo de vida

A cerimónia sustenta a vida

Cerimónia como formalidade mecânica

A aprendizagem é experimental e colaborativa

Aprendizagem como didática

A aprendizagem baseada no transe é útil e natural

O transe é perigoso ou provém do mal

A natureza humana é boa mas maleável

A natureza humana é corrupta ou má

O humor é uma ferramenta essencial para lidar com a situação

O humor é utilizado para humilhar

A resolução de conflitos é o regresso à comunidade

Os conflitos são atenuados através da vingança e do castigo

A aprendizagem é holística e baseada no local

A aprendizagem é individualista e passiva

A vitalidade pessoal é essencial

A vitalidade pessoal é minimizada

As leis da natureza são primordiais

As leis sociais são primordiais

O auto-conhecimento holístico é o mais importante

O auto-conhecimento não é prioritário

Autonomia do indivíduo, do grupo e das gerações futuras

Autonomia apenas para si próprio

A natureza é benevolente e relacional

A natureza é perigosa ou apenas utilitária

Todas as formas da Terra são sensíveis

Os seres que não são humanos não são sensíveis

Grande respeito pelo feminino

Pouco respeito pelo feminino

Honra a diversidade e as múltiplas perspectivas

Pouca perceção da importância da diversidade

Reuniões comunitárias de cura e transformação

Cura privatizada e transformação individualizada

Ligado à terra

Distanciamento da terra

Ênfase em tornar-se plenamente humano

Desvalorização do tornar-se plenamente humano

Dependência mútua

Independência das relações

Centralidade da gratidão

Centralidade do esforço

Não interferência

Manipulação dos outros

A cura relacional é auto-iniciada

A cura relacional é confiada a especialistas

Compreender/aceitar a morte e o morrer

Temer e evitar a morte ao extremo

A reciprocidade é um princípio orientador

A competição como princípio orientador

Ligação prática e espiritual ao cosmos

Interesse científico pelo cosmos

🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência. 

Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.