Pequeno Livro da Imanência

Prefácio de Maristela Barenco

Edição de Autor

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A Transpiração da Imanência

Sentes o vapor subir da terra quente?

O orvalho da manhã a escorrer dos corpos entrelaçados do mundo?

Tecemos com raízes molhadas e pele antiga.

A imanência não fala, transpira.

Exala dos poros abertos no corpo do mundo,

Humedece os limites entre o dentro e o fora, entre o saber e o sentir. 

Transpirar é deixar que o calor do vínculo evapore por nós sem ser capturado ou controlado.

A transpiração da imanência lembra-nos que estamos vivos com—não separados de.

É o modo como a relação se manifesta no cheiro da terra depois da chuva, no suor partilhado no trabalho coletivo, na respiração entrelaçada de quem realmente escuta. 

Escutar o mundo molha-nos com a sua própria vitalidade.

A imanência transpira, move-se, infiltra-se, espalha-se.

Desfaz a ficção da separação.

Onde há transpiração, há porosidade.

Onde há porosidade, há parentesco. E onde há parentesco, há possibilidade de viver, saber, e cuidar com, e não sobre.

. . .

 

Imanência como Teia de Parentesco 

A imanência não é apenas uma ideia filosófica ou espiritual. É uma força terrestre de insubmissão relacional, um fio de continuidade entre corpos, terras e espíritos que recusa a verticalidade colonial da separação e da hierarquia. A imanência é o chão onde tudo se toca sem se fundir em um, onde cada entidade vibra por si, com os outros, numa dança de afetações mútuas. Falamos de emaranhamento vital, um parentesco que se recusa a pedir permissão à lógica ocidental para existir. Como tantas culturas contextuais, nativas, indígenas e aborígenes que lutam por existir, ainda se recordam.

Lorraine Code já nos deu a cusquice como metodologia horizontal. E a imanência aparece como o seu território afetivo: não há torre da razão, só corredores entrelaçados de matéria viva, que se tocam em murmúrio, resistência e reexistência.

Neste contexto vivo e vibrante, a imanência:

  • Derruba a divisão mente/corpo, sujeito/objeto, humano/natureza. Cada ser é constituído na relação, e não antes dela. Não há “coisas” independentes; só ocasiões de encontro, como sugere Whitehead. Ou Ecologias de Parentesco, como trazem Martinez e Salmón.
  • Expõe a colonialidade da abstração. A ideia de matéria inerte servia de desculpa para desumanizar corpos racializados e explorar territórios. Imanência restitui agência a tudo o que foi reduzido a “recurso”. O não-humano, os corpos não-normativos os corpos-fronteira, os gestos rituais, as atmosferas emocionais; tudo volta a ser reconhecido como participante digno.
  • Convoca uma ética do sentir. A imanência não é sobre saber, mas sobre ser afetado. Isto aproxima-a radicalmente da cusquice codeana: ambos são modos de gerar conhecimento a partir do vínculo, da intimidade, da escuta lateral. Ambas recusam a neutralidade e cultivam uma episteme do cuidado situado.
  • Reenvia-nos para o pluriverso. Não uma só ontologia, mas muitas formas de estar e de saber que se reconhecem mutuamente, sem se hierarquizarem, como nos recorda Aura Cumes ou Arturo Escobar (entre tantos outros).

Num mundo imanente, o conhecimento não se colhe de cima, mas germina entrelaçado nas teias do afeto. A cusquice, como as raízes de uma floresta, opera por baixo da lógica visível, não para destruir, mas para nutrir relações que o colonialismo tenta silenciar. Cada murmúrio é um micélio. Cada partilha íntima é um compromisso de pertença. A ecologia, aqui, não é só estudo da casa, é dança do habitar colectivo, em impermanência viva. Imanência é essa condição em que tudo é parente de tudo. Não por identidade, mas por afinidade em movimento, como nas revoadas de asas e penas.

A imanência não pergunta “o que és?”, mas “com quem estás em relação?”. E nisso, ela e a cusquice são irmãs bailantes: ambas recusam a torre, ambas escutam a vibração do chão. Ambas têm o poder de dar corpo a um mundo em que o saber não é extraído, mas cultivado em comum, nos interstícios.

A imanência é a condição em que não há fora. Tudo está dentro da relação, sem hierarquias externas, sem plano superior. A imanência recusa a verticalidade teológica, colonial, epistemológica. Ela insiste no aqui. No agora. No corpo. No chão.
O mundo só pode ser conhecido ao ser sentido. Não como dado nem recurso, mas como presença e relação.

Referências

  • Trans-Corporeal Feminisms And The Ethical Space Of Nature (Stacy Alaimo)
  • At Work In The Ruins (Dougald Hine)
  • Earthly Things, Immanence, New Materialisms, And Planetary Thinking (Karen Bray, Heather Eaton, And Whitney Bauman, Editors)
  • Eco-Concepts, Ecocritical Theory And Practice (Series Editor: Douglas A. Vakoch)
  • Ecology And Theology In The Ancient World (Ailsa Hunt, Hilary Marlow And Contributors)
  • All Incomplete (Stefano Harney, Fred Moten)
  • Meaningful Flesh: Reflections On Religion And Nature For A Queer Planet (Editado Por Whitney A. Bauman)
  • Religion, Materialism And Ecology (Edited By Sigurd Bergmann, Kate Rigby And Peter Manley Scott)
  • The Ecological Self (Freya Mathews)
  • Vibrant Matter, A Political Ecology Of Things (Jane Bennett)
  • CODE, Lorraine. Ecological Thinking: The Politics of Epistemic Location. New York: Oxford University Press, 2006.

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