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A Tirania da harmonia
Quando procuramos espaços terapêuticos é porque precisamos de ajuda. E que bom é que estes lugares ancoradores e sem julgamento existam. Tão importante que é ter alguém que nos ampare nas horas difíceis, que nos ouça e acarinhe. Estes são sem dúvida lugares de partilha valiosos, pois, a crescente individualização diz-nos que temos de resolver as nossas falhas, erros ou crises sozinhos. O que é uma violência enorme para seres sociais como nós, que desde há milhares de anos comungamos as crises em conjunto.
Mas, numa cultura reducionista e imatura, existem pressões invisíveis e insidiosas aos caminhos vivos da Vida.
A Vida como ecossistema respira e transforma-se, não cedendo à violência da linearidade que lhe queremos impor. Mas somos aculturados a entender esta Vida orgânica como uma nódoa a ser limpa ou um problema a ser resolvido, ignorando o seu potente valor intrínseco.
Existem muitas técnicas de equilíbrio e harmonização a circular no tecido de sabedoria comunal, umas milenares, outras mais recentes, umas apropriadas e outras recíprocas.
No entanto, a ideia geral é: temos de nos manter em harmonia e equilíbrio, sempre, pois tudo o que esteja fora disso é um erro, um desvio, uma crise ou um engano.
Então aplicamos cegamente todas as técnicas possíveis para a manutenção de uma harmonia que seja preferencial e rapidamente palpável e visível olho nu. Acreditamos que se formos mais disciplinados, se controlarmos mais um bocadinho, a vida terá menos surpresas e, finalmente, conseguiremos agarrar e conter a harmonia. Evitando todas as crises, ansiedades, tragédias, vergonhas, culpas e humilhações. Todos os defeitos ficam fora da caixa limpa, e bem tapada, da harmonia e do equilíbrio.
Queremos fluxo e “tudo a fluir” e deus nos livre de termos tralha interna ou externa que nos prenda ou pese, que nos bloqueie e interrompa o fluxo da abundância (o que quer que queira dizer para cada um de nós). Tudo tem de ser limpo, e assim mantido, sempre sob a trágica expectativa limitada de ancorar apenas harmonia e equilíbrio, apesar de tal nunca acontecer.
Esta tirania da harmonia traz-nos a uma redução do espectro total da vida.
Em vez de relembrar ferramentas de passagem e transição das inevitáveis crises da vida, evita-as a todo o custo, negligenciando toda a sábia Vida que regeneram. A tirania da harmonia faz-nos esperar de forma imatura que tudo esteja bem, sempre.
Por outro lado, a tentativa de bloquear o fluxo de algo num sistema vivo e dinâmico desregula todo o sistema, retirando energia das possibilidades emergentes e espontâneas.
A vida fica estéril e à superfície, pois permitimos que seja harmoniosa… nada mais. Em vez de uma floresta imanente e viva passa a ser um laboratório de controle, onde tudo fica reduzido, objectificado e limitado a algo (fantasiado) previsível e controlável.
Claro que a ideia instaurada de que o “desenvolvimento pessoal” é uma linha de progresso feita de listas de coisas a implementar não ajuda à experiência profunda da vida em todas as suas cambiantes, aos seus paradoxos e riqueza de cada momento. Reduzimo-nos à técnica e perdemos o vínculo ao que é. Seguimos as listas todas de fio a pavio na esperança de agarrar a harmonia que tende a fugir, eludindo-nos a cada ciclo.
Voltarmos a estar conscientes da riqueza das nossas vivências, todas elas, do maravilhoso ao dilacerante, acorda em nós o que os ossos sabem ser verdade: que a Vida é soberana em todas as suas fases e momentos, que podemos relembrar a sua potente criatividade assumindo o nosso humilde lugar singular na sua teia.
É urgente permitirmo-nos abrir a sentir para além da ilusão de uma vida perfeita, harmoniosa e equilibrada, para podermos sabiamente recordar as essenciais ferramentas de transição. Não fechando os momentos, mas vivendo-os.
🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência.
Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.