A Abundância através dos muros em ruínas

Regressei finalmente, depois de uma longa e dolorosa ausência, sempre a escutar o chamamento do Riacho enquanto o meu corpo gesticulava em sinal de reconhecimento. Finalmente encontrei o tempo e a disponibilidade interior para regressar às margens da Ribeira. Ou talvez a necessidade visceral de consolo e companhia se tenha tornado insuportável.

Depois de tanto tempo de ausência, ergueram-se em mim grossos muros. Cada vez mais altos.

Estacionei o carro ali perto, ouvindo a água a correr. O meu coração palpitava à medida que me aproximava, e os sons da água tornavam-se mais altos; como sentia falta destas vibrações vivas, como desejava esta comunhão. Era como regressar a casa depois de uma longa ausência, e as lágrimas rolavam-me pelo rosto, chorando de gratidão por poder regressar. Oh, meu parente, meu Ribeiro como senti a tua falta! Lágrimas de felicidade por poder escutar estas águas e uma profunda tristeza por me ter mantido afastada durante tanto tempo.

Estes são muros antigos, muros culturais que, dizem-nos, se destinam a manter-nos seguros. Dentro e a salvo. Separados e seguros. Controlados e seguros.

As águas do Riacho estão altas; nunca as vi assim antes. Os patinhos da primavera anterior são agora adultos, e finalmente vi, com admiração, nas águas em movimento, os hieróglifos aquáticos, débeis e impermanentes. Antes, nas secas e escaldantes estações anteriores, as águas estavam demasiado rasas, com pouco movimento, pelo que o Riacho estava mudo, sem voz e ofegante. Parece que as águas do inverno lhe trouxeram a voz de novo, através dos sons palpitantes e dos padrões visuais da superfície. Está vivo!

O muro de pedra começa a tremer.

Fiquei ali parada, à escuta, a ver e sentir todo o movimento das águas e dos pássaros. Senti suavemente o meu corpo a relaxar através das águas que passavam. O meu coração foi banhado e limpo das suas tensões, mágoas e tristezas. O fluxo exterior ligou-se suavemente ao fluxo interior, pulsando em conjunto. Nem preciso de pedir, porque a Ribeira dá-me tanto. De uma forma natural e selvagem, o meu corpo cede, rendendo-se em sincronia com o jorro de inverno, abrindo espaço a uma presença profundamente emocional. Este momento fugidio permite lágrimas profundas, pois não sei como cuidar destas águas. Não sei como retribuir, por toda a minha ignorância urbana moderna e do meu modo de vida isolado. Oh, e como estas águas me cuidam! Mesmo sendo um Riacho urbano, com todas as suas margens domesticadas e débeis remoinhos de água. A sua correnteza rasteja sob a nossa pele e lava-nos. A Ribeira continua a cuidar da nossa alma, apesar de tudo o que lhe foi violentamente retirado do seu corpo aquático. Uma ablução sagrada, só por permitir a presença.

Muros a ruir, dor a uivar, Vida a reparar.

A minha devoção não é suficiente, pois não tenho sabedoria para cuidar deste Riacho, não sei retribuir a abundância da própria Vida. Nunca poderei tocar nestas águas, nem beber, nem cozinhar, nem banhar-me nelas. Por isso, ofereço as minhas lágrimas à corrente, mesmo que as pequenas gotas salgadas nunca cheguem ao corpo murmurante da Ribeira. E continuo a observar os pássaros à volta. Ouvindo os seus cantos. E, pela primeira vez, vejo um peixe, um pequeno preto, a nadar debaixo de água! Está vivo!

Com o coração e os olhos abertos, vejo as pedras que ficam secas no leito seco do riacho durante nove meses por ano, agora debaixo de água. Vejo-as mudar de forma sob o movimento incessante da água, uma como uma tartaruga e outra como um pequeno urso. Estão apenas a mover-se e a contar histórias no seu movimento ondulante.

Não tenho mais palavras, apenas gratidão. 

Estou grata pelo buraco na parede que me permite sentir e cair por vislumbres de uma Vida recíproca.

 

🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência. 

Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.