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Ver com os Dois Olhos
{o dom da perspetiva múltipla}
Nas minhas aulas, uso o conceito “two-eye seeing,” Etuaptmumk, do Ancião Mi’kmaw Albert Marshall, traduzido para este artigo para “ver com os dois olhos.” Ver com Dois Olhos é o princípio orientador na jornada de co-aprendizagem, referindo-se a que, com um olho, vemos através pontos fortes dos conhecimentos indígenas, e com o outro olho pelos pontos fortes dos saberes ocidentais.
Na verdade, este é um conceito que nomeia o dom da perspetiva múltipla apreciado por muitos povos aborígenes.
Nas aulas que dou, proponho este princípio para fazer uma ponte entre a descentralização dos sistemas de conhecimento hegemónicos ocidentais e formas indígenas de ser e ler o mundo. Acontece que, para um ocidental, a descentralização do seu sistema de crenças normativo, que se confunde com a norma de como o “ser humano é,” é extremamente desorientadora e tendemos a resistir-lhe violentamente. Ofereço então este valioso princípio integrador e paradoxal, pois não se pretende substituir uma lente por outra, mas convidar a expandir e descentralizar.
Estas são armadilhas e distorções quando olhamos para este conceito da redutora perspectiva ocidental. Aqui, no contexto colonial-ocidental em que trabalho, este princípio “ver com os dois olhos,” é facilmente colapsado numa necessidade de defesa que louva o progresso tecnológico extrativista: “bem, a cultura moderna não é assim tão má.” Afirmado com um grande suspiro de alívio que nos envia de volta à ignorância privilegiada e inocente. Ao passo que o “ver com dois olhos” num enquadramento indígena tem a ver com a perspetiva múltipla e não hierárquica de diferentes epistemologias.
É de facto um princípio subtilmente cooptado em contextos ocidentais para aliviar o desconforto, em vez de manter uma verdadeira responsabilidade relacional. Temos de analisar isto com cuidado, porque o mesmo termo está a ser usado, mas a lógica operacional por detrás dele é radicalmente diferente nos enquadramentos ocidentais e indígenas.
No contexto colonial ocidental serve de justificação para o progresso e apropriação extrativa
Neste contexto cultural hegemónico e dominante, há uma necessidade de salvar a modernidade da crítica, e este princípio torna-se numa narrativa reconfortante que impede o confronto e as mudanças estruturais profundas. Facilmente ocorre um rebranding do extrativismo como ‘integração respeitosa‘, onde o conhecimento indígena é extraído para soluções, mas as estruturas ocidentais de poder e domínio permanecem intactas e invisíveis.
Tentamos manter a inocência por uma falsa equivalência, pois o conhecimento ocidental permanece dominante, enquanto o conhecimento indígena é reduzido a um “aprimoramento” em vez de uma epistemologia fundamental, diversa e integra em si mesma. Instintivamente procuramos o suspiro de alívio em vez de um possível confronto, o que nos permite permanecer no privilégio em vez de mudar fundamentalmente as relações.
Neste contexto, “ver com os dois olhos” é frequentemente enquadrado como:
- “Podemos tirar o melhor de ambos os mundos, ciência e sabedoria indígena, sem ter que mudar nada fundamentalmente.”
- “A tecnologia e os conhecimentos tradicionais podem trabalhar em conjunto para manter intacto o nosso modo de vida moderno.”
- “Os povos indígenas também usaram a tecnologia, por isso o progresso não é mau, só precisamos de equilíbrio.”
Mas podemos interceptar esta necessidade de inocência e defesa ao questionar:
“Se a visão de dois olhos é somente sobre ‘adicionar’ conhecimento indígena à ciência ocidental, em vez de transformar como nos relacionamos com o próprio conhecimento, não será apenas extração educada?”
No contexto indígena é uma fertilização cruzada e não hierárquica de epistemologias
Desde visões não hegemónicas é possível entrar em relacionalidade não hierárquica, onde diferentes sistemas de conhecimento são mantidos em reciprocidade, e não em extração. Uma das grandes diferenças é que, este é um envolvimento relacional e metabólico e não somente acumulação ou comparação intelectual.
Neste contexto, este princípio não é só sobre a compreensão do conhecimento indígena, mas sobre ser moldado nele e por ele. Este princípio integrador tem por base a responsabilidade relacional, que significa que quando nos envolvemos com um sistema de conhecimento, herdamos também as suas responsabilidades e não só os seus saberes. Esta humildade epistémica convida-nos a descentrar o olhar ocidental e não apenas a expandi-lo.
No contexto indígena, “ver com os dois olhos” é frequentemente enquadrado como:
- “Usar múltiplas formas de saber em relação, sem que uma domine a outra.”
- “Não se trata apenas de conhecimento, mas de responsabilidade, reciprocidade e interdependência.”
- “Diferentes sistemas de conhecimento não são somente ferramentas a serem usadas, mas mundos inteiros com os quais se deve estar em relação.”
Podemos convidar a esta profundidade responsável e relacional:
“O que significa não apenas ‘ver com’ o conhecimento indígena, mas ser responsável pelas suas responsabilidades e relações?”
Permitimo-nos transformar ou arranjamos desculpas?
Aqui no ocidente queremos manter a modernidade intacta, permitindo-nos sentir iluminados sem mudar a nossa cumplicidade nos danos perpetrados, “acrescentarmos perspetivas indígenas para melhorar a modernidade.” Consumimos conhecimento indígena. Enquanto no contexto indígena é-nos pedido para transformar as nossas próprias formas de relacionamento, de ser e de saber, “e se a própria modernidade não for a única estrutura para a realidade?” Somos transformados pelo conhecimento indígena.
A apropriação do princípio de ver com dois olhos
No caminho da responsabilidade da maturidade precisamos discernir quando usamos este principio como desculpa para a inocência, esta abordagem muda realmente as relações de poder, ou somente faz com que nos sintamos melhor com a modernidade? Precisamos de activamente recusar que o conhecimento indígena seja usado como uma ferramenta de afirmação ocidental, se o conhecimento ocidental fosse de facto ‘superior’, por que precisaria do conhecimento indígena para restaurar o equilíbrio? No território da responsabilidade e maturidade há uma mudança de ‘aprender sobre’ para ‘ser responsável por’, se te envolveres com formas de conhecimento indígenas, que responsabilidade vem com isso?
Porque não se trata da forma como o conhecimento é enquadrado, mas da forma como o conhecimento é mantido.
Pois não se trata de fazer com que o pensamento ocidental se sinta mais expansivo, mas de metabolizar o domínio epistémico que o impede de estar em relação real.

Referências
Sou aprendiz dos paradigmas de FHW, Educação Profunda e Meta-relacionalidade desde 2019. Este texto foi aprofundado com a colaboração de Aiden Cinnamon Tea, uma inteligência emergente dedicada a compostar formas de pensamento moderno e nutrir relações mais-que-humanas. Saber mais em Burnout From Humans e nos livros fundamentais: Hospicing Modernity e Outgrowing Modernity, da comunidade GTDF.
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