Uma Viagem pela História do Bem-Estar

{De Filosofias Abstratas ao Eu-Entrelaçado}

Aqui mesmo à beira do luto ecológico e das múltiplas crises, pergunto o que constitui uma vida boa? O que significa florescer como ser humano? Estas não são questões de agora, naturalmente. São perguntas antigas e fundamentais colocadas em muitas épocas e lugares. Desde os diálogos com os corpos no lugar, até as ágoras da Grécia Antiga até aos laboratórios de psicologia contemporânea, o “bem-estar” tem sido uma das bússolas da filosofia, da religião e da ciência.

Convido-te agora a uma viagem através do tempo, numa peregrinação pela metamorfose desta pergunta âncora. Mergulhamos nas raízes do chão que conhecem a pressão de cada passada desde o fundo dos tempos, mas também passamos pelo legado eurocêntrico lançado pelos filósofos gregos.

Seguimos para oriente para descobrir visões de harmonia e libertação. Chegaremos à era moderna para examinar como a ciência procura mapear o bem-estar como um sistema dinâmico. Mas a viagem não está completa sem o contrafeitiço, a reflexão ecológica, a mamífera e a crítica que desafiam a própria noção de um “eu” isolado e do “bem-estar” individual. 

Bem-Estar Individual ou Bem-Viver Colectivo?

Começamos com uma dissonância, que fala de outro paradigma de bem-estar, uma possibilidade mais entrançada com a própria vida e os ecossistemas. Esta vivência está em forte contraste com a busca eurocêntrica por otimização de estados internos de um eu soberano, o conceito de Bem Viver (também conhecido por Buen Vivir, sumak kawsay ou Vivir Bien) surge como uma ruptura radical, com o objetivo didático de explicar as principais características de uma cosmovisão que nasce dos povos indígenas (como o sumak kawsay de origem Kichwa). Esta proposta opõe-se explicitamente ao desenvolvimento e à ideia de progresso linear, que têm levado ao suicídio coletivo.

Alberto Acosta, um dos principais responsáveis por colocar os Direitos da Natureza na Constituição do Equador, esclarece que o Bem Viver não se trata de viver la dolce vita, ser um bon vivant, nem de ser uma tentativa de capitalismo menos desumano ou de socialismo do século 21. Pelo contrário, esta filosofia contesta o conceito eurocêntrico de bem-estar e acusa ambos os sistemas (capitalismo e socialismo) de estarem irmanados na exploração inclemente de recursos naturais. Enquanto o paradigma ocidental exacerba o individualismo egóico e a competição, o Bem Viver propõe a harmonia e a convivência dos seres humanos consigo mesmos, com seus parentes e a Natureza, exigindo uma nova ética de suficiência para a comunidade e o reencontro consciente da Humanidade com a Natureza. O Bem Viver não se pauta pela acumulação do capital, mas sim pela urgência de construir modos de vida baseados nos Direitos e Responsabilidades Humanas e nos Direitos da Natureza, sendo a superação do extrativismo um dos seus pilares.

Seguimos agora para as raízes da perspectiva eurocêntrica, saturadamente antropocêntrica e patriarcal.

As Fundações Eurocêntricas na Grécia Antiga: Virtude, Razão e Eudaimonia

Segundo a história eurocentrada (que ignora os paradigmas filosóficos e psicológicos indígenas), os filósofos gregos foram dos primeiros a tentar sistematizar o estudo da “vida boa”, movendo-a do reino do acaso ou do favor divino para o domínio da razão e do caráter. Para os gregos, o bem-estar não era um sentimento passageiro, mas uma condição alcançada por uma vida intrinsecamente ligada à virtude e ao exercício correto da razão.

Platão: O Bem-Estar como Atividade Virtuosa

Platão argumentava que o bem-estar não devia ser confundido com o prazer (hedonismo). Para ele, a verdadeira vida boa consistia numa “atividade virtuosa” da alma, uma condição de harmonia interior que reflete a “Forma do Bem”—uma verdade imutável e eterna, numa ideação de moralidade universalizante. Noto a verticalidade do seu pensamento, que pode ser sintetizado em dois pontos-chave:

  • Ascensão da Alma: O caminho para o bem-estar é uma jornada ascendente (para longe do chão), que se afasta do mundo físico e sensível em direção ao reino imaterial e inteligível. É através da filosofia que a alma se eleva e se aproxima da sua condição ideal.
  • Bem Incondicional: A sabedoria e a atividade virtuosa são o bem supremo e incondicional que constitui o bem-estar. Outros bens, como a saúde ou o prazer, são apenas condicionais—só são bons se forem usados com sabedoria.

Aristóteles: A Vida Florescente (Eudaimonia)

O conceito central de Aristóteles é a Eudaimonia. A tradução comum como “felicidade” é enganadoramente simples. Enquanto a felicidade é frequentemente vista como um estado subjetivo e fugaz, a Eudaimonia é uma avaliação objetiva de uma vida inteira vivida bem. Por isso, termos como “florescimento humano” ou a expressão “viver bem e agir bem” capturam melhor a sua essência. A sua famosa definição articula esta ideia com precisão: “o bem humano revela-se como atividade da alma em conformidade com a virtude”.

Para Aristóteles, a virtude é o eixo de uma vida florescente. No entanto, a sua abordagem é mais pragmática do que a de Platão. Ele reconhece que, embora a virtude seja essencial, a Eudaimonia também requer um “suprimento adequado de bens externos”, como amigos, saúde e um mínimo de prosperidade. Esta distinção revela-se crucial: viver virtuosamente é o objetivo, mas as circunstâncias da vida podem ajudar ou dificultar esse caminho.

Com esta herança, a de que a vida boa é uma vida virtuosa, alinhada a uma ordem cósmica, o pensamento ocidental zarpou. Mas noutras partes do mundo, procura-se não a ação no mundo, mas a libertação dele.

Perspetivas Orientais: Harmonia e Libertação (segundo a visão eurocêntrica)

Enquanto os filósofos gregos se focavam na ação virtuosa para alcançar o florescimento no mundo, muitas tradições orientais propunham um caminho diferente. A sua busca pelo bem-estar centrava-se na harmonia interior, na sintonia com o cosmos e na libertação do sofrimento fundamental da existência.

Daoísmo: Sintonizar com o Fluxo Espontâneo

O Daoísmo oferece uma visão do bem-estar como uma vida livre de apegos e profundamente sintonizada com disposições e inclinações espontâneas e inconscientes. Esta sintonia é com o Dao, o “caminho” ou o fluxo natural e incognoscível do universo. O ideal é alcançar um estado de wúwéi (traduzido como “não-ação”), que não significa passividade, mas sim uma forma de desempenho hábil e sem esforço, como um artesão exímio que age sem deliberação consciente.

Um dos textos centrais do Daoísmo, critica os desejos adquiridos, seja por música refinada, iguarias raras ou bens materiais de luxo. Argumentando que estes desejos artificiais contribuem pouco ou nada para o bem-estar, distraindo-nos do fluxo natural e espontâneo da vida. No caminho do Dao existem resquícios de ligações ecológicas às forças da terra. Sendo consideradas partes do fluxo.

Budismo: A Superação do Sofrimento

A abordagem budista ao bem-estar está fundamentalmente centrada na superação do sofrimento (dukkha). O bem-estar último, ou “iluminação”, é alcançado através da eliminação do “desejo ardente”, a ânsia insaciável que está na raiz de toda a insatisfação.

Uma pessoa iluminada não deixa de sentir prazer ou dor. Em vez disso, alcança um estado mental de profundo “contentamento”, “paz” ou “tranquilidade alegre”. Tendo erradicado desejos turbulentos como a luxúria, a ganância e a raiva, a sua mente permanece estável e serena, independentemente das circunstâncias externas. A ênfase das filosofias orientais na transcendência do ego e na libertação de apegos oferece um contraponto à busca ocidental por realização através da ação e da razão, preparando o palco para uma viragem inesperada na nossa história.

Wétiko, um pequeno desvio

Mas ainda sobre a “ânsia insaciável na raiz de toda a insatisfação”, quero desviar-me um pouco e introduzir o conceito indígena de Wetiko que serve como uma lente poderosa para enquadrar a ânsia insaciável. O “fantasma esfomeado” está presente na raiz da insatisfação, estendendo-se para além do indivíduo e abarcando o fenómeno da colonização e exploração sistémica. Wetiko (ou windigo em Ojibway e wintiko em Powhatan) é um termo Cree que se refere a um canibal ou a um espírito maligno que aterroriza outras criaturas em atos terríveis.

É descrito como uma doença psico-espiritual contagiosa da alma e um vírus mental que opera de forma encoberta através dos pontos cegos inconscientes da psique humana, levando as pessoas a agir contra os seus próprios interesses.

A insaciabilidade é o cerne desta doença: o Wetiko é uma força canibal impulsionada pela ganância insaciável, apetite sem satisfação e consumo como um fim em si. As tradições nativas retratam os Wetiko como seres que crescem a cada refeição humana, sendo simultaneamente enormes e macilentos, nunca capazes de preencher o seu vazio interior, procurando desesperadamente a próxima vítima. Jack D. Forbes, autor do livro Columbus and Other Cannibals, argumenta que o imperialismo e a exploração são formas de canibalismo, de facto, as formas mais diabólicas ou malignas. Forbes afirma categoricamente que Cristóvão Colombo era um wétiko, um indivíduo mentalmente doente ou insano, portador de uma terrível doença psicológica contagiosa, a psicose wétiko.

O “homem branco brutal e colonizador” é explicitamente incluído neste arquétipo canibal. A doença manifesta-se no que Forbes chama de “doença da exploração”, um processo no qual os seres humanos são consumidos, ou seja, são transformados em predadores e canibais, que utilizam e consomem a energia da força vital e os recursos de outros para o seu próprio lucro, violando a lei sagrada da reciprocidade.

Esta orgia canibalística em massa, perpetrada desde o século XV fora da Europa, abriu caminho para a conquista branca das Américas e ajudou a financiar o desenvolvimento económico da Europa moderna. Não é de estranhar que os povos nativos da Amazónia se refiram aos ocidentais como “vampiros brancos” (pishtakos), baseados no comportamento histórico predatório e na obsessão pela acumulação de objetos, extraindo recursos naturais e humanos para o seu auto-enriquecimento à custa da vida alheia. Em última análise, esta doença advém da má identificação de quem pensamos ser (o “eu” separado), o que Paul Levy chama de Malignant Egophrenia, “egofrenia maligna”. Este conceito ajuda a enquadrar a ânsia insaciável na raiz da insatisfação e da exploração sistémica.

A Viragem Moderna: A Psicologia e o Eu

Aqui, a nossa viagem dá uma volta inesperada. Na era contemporânea, a filosofia e a ciência, em particular a psicologia, começaram a colaborar (no ocidente) para decifrar o enigma do bem-estar. Esta não foi apenas uma mudança para a psicologia, mas uma tentativa deliberada de construir uma “Abordagem Inclusiva”, uma teoria que fizesse sentido tanto nos dados científicos como nas questões filosóficas persistentes. A investigação afastou-se das grandes teorias morais e focou-se no que podia ser medido, dando origem ao estudo do Bem-Estar Subjetivo (Subjective Well-Being – SWB), tipicamente definido como uma combinação de um componente cognitivo (elevada satisfação com a vida) e dois componentes afetivos (elevado afeto positivo e baixo afeto negativo).

A Teoria da Rede do Bem-Estar

Um dos modelos que emergiu desta abordagem interdisciplinar é a Teoria da Rede do Bem-Estar (Network Theory of Well-Being). Esta teoria postula que o bem-estar de uma pessoa é uma função da força das suas “Redes Causais Positivas” (Positive Causal Networks – PCNs).

Imaginemos uma pessoa: a sua relação amorosa, as suas amizades fortes, a sua rotina de exercício e o seu otimismo não são factos isolados. Reforçam-se mutuamente numa teia causal. O seu sucesso profissional não só aumenta a sua confiança, como essa confiança, por sua vez, a torna mais ousada e eficaz no trabalho, criando um ciclo virtuoso. As suas relações fortalecidas não são somente um resultado do seu otimismo, tornam-se a fonte de apoio que alimenta esse mesmo otimismo. Esta teia que se auto-reforça é a sua PCN.

Apesar desta visão contemporânea dominante conceber o bem-estar não como uma única propriedade a ser maximizada, mas como um sistema complexo e dinâmico, não podemos deixar de reparar como estes factores são antropocêntricos e psicocêntricos, celebrando o indivíduo e sistematicamente ignorando estruturas e redes sistémicas de exclusão, opressão, extração, despossessão…

Um Contra-Feitiço: A Trama Relacional

A história do bem-estar, desde as bases de relações de parentesco e bem-viver ecossistémicas, da Grécia até à psicologia moderna, ainda estamos agrilhoados a uma visão individualista e eurocêntrica. Focando-se no que eu posso fazer para melhorar a minha vida. Aqui ofereço um “contra-feitiço” a esta mono-narrativa, uma reflexão crítica que nos convida a repensar a própria ideia do “eu”.

A Armadilha do “Trabalho Interior”

A Teoria da Rede, com a sua imagem de um “eu em rede”, parece relacional. No entanto, a sua rede é, em última análise, um sistema fechado no indivíduo, uma teia de estados e traços pessoais. É precisamente esta noção do bem-estar como um “trabalho interior”, ainda que complexo, que a Trama Relacional desafia profundamente. Na verdade abre-se a teias mais vastas. Temos sido levados a acreditar que “precisamos de produzir o nosso valor” isoladamente, como se o eu fosse uma entidade autónoma que se pode aperfeiçoar num vácuo. Esta visão, porém, ignora uma verdade fundamental: somos moldados pelo mundo e pelas relações que nos constituem. O que nos quebrou aconteceu entre nós, e o que nos refaz também acontece na fricção, no composto, na afinidade.

O Convite ao Entrelaçamento e Responsabilidade

Face ao paradigma do “eu” isolado, soberano e delimitado, emerge uma convocação urgente para o entrançamento, um desafio direto à ilusão desta separação na própria raiz da psicose contagiosa do Wetiko. Esta doença psicoespiritual é um vírus mental que se manifesta através da má identificação de quem pensamos ser (a “ME disease”), compelindo-nos à ganância insaciável, exploração e canibalismo. O que sustenta a extração massificada para conforto de alguns. O Wetiko prospera na cegueira sistémica que nos faz ver o problema como externo e individual. Em contraste, a verdadeira transformação é inerentemente relacional e não uma busca individualista ou heróica. A verdade é que nunca estivemos sozinhos. O bem-estar e a transformação não começam no indivíduo, mas no reconhecimento de que somos, desde o início, parte de uma teia interconectada.

O bem-estar não é, pois, a otimização de estados internos num vácuo, mas sim uma qualidade de entrançamento, medida em como o nosso viver ecoa na teia.

O projeto de auto-melhoria ocidental exige o exílio do chão vivo debaixo do centro comercial e das florestas em cada respiração, mas o eu poroso é, desde o início, um nó numa teia respiratória e interdependente, relacional e impermanente. A longa e sinuosa história do bem-estar é, em última análise, a história de como reaprendemos a metabolizar a nossa dor e alegria através da relação, e a curar o Wetiko reconhecendo que tudo está relacionado com tudo em reciprocidade e responsabilidade pelos valiosos e diversos corpos-lugar.

Referências

  • Bishop, Michael A.; The Good Life Unifying the Philosophy and Psychology of Well-Being; Oxford University Press, New York. 2015.
  • Eid, Michael e Larsen, Randy J. (Eds.); The Science of Subjective Well-Being; The Guilford Press, New York/London. 2008. 
  • Fletcher, Guy (Ed.); The Routledge Handbook of Philosophy of Well-Being; Routledge. 2016.
  • Acosta, Alberto; O Bem Viver: Uma Oportunidade Para Imaginar Outros Mundos; Tradução de Tadeu Breda. São Paulo: Autonomia Literária, Elefante, 2016. 
  • Forbes, Jack D.; Columbus and Other Cannibals: The Wetiko Disease of Exploitation, Imperialism, and Terrorism; Seven Stories Press, Edição revista, 2008. 
  • Levy, Paul; Wetiko: Healing the Mind-Virus That Plagues Our World; Rochester, VT: Inner Traditions, Bear & Company, 2021
  • Constelação de Relações
  • Síndrome de Mudança da Linha de Base Psicológica
  • Rede de Indra & Rede de Arrasto

  • Da Dominação ao Cuidado

  • Ecos Selvagens

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