Um peixe, um copo de leite e territórios irrelevantes
Tive um sonho há alguns anos, e a imagem do sonho permaneceu comigo até agora, vividamente, ainda a reverberar. Era um sonho simples, mas estou a trabalhar através de uma poderosa imagem simbólica desde então. Sonhei que era um pequeno peixe-dourado que vivia num copo de leite, por isso tudo o que eu fazia era nadar à volta e por vezes esbarrar contra as paredes de vidro. Tudo o que conseguia ver era branco – uma cegueira branca.
A minha realidade como um pequeno peixe num copo de leite era estreita. O fluido branco opaco que me envolvia era tudo o que eu conhecia, por isso sentia-me protegida na sua densidade mas também cativa e presa pelas paredes de vidro invisíveis. Sentia-me demasiado apertada. Mas esta limitação de espaço era tudo o que eu conhecia, por isso tudo fora do copo de leite era irrelevante, pois não conseguia ver para além dele. A cegueira branca era toda a minha realidade.
Ainda carrego, sinto e mantenho a sensação corporal vívida de ser este peixe no copo de leite. Ainda é demasiado real no meu corpo/imaginação, muito vivo. Traz o paradoxo entre a ilusão de liberdade, só porque não se vê nada para além do leite ou do copo, tão inocente e violento ao mesmo tempo. O corte e a negligência da empatia por TUDO o que está fora do copo… e mesmo dentro dele, porque apenas se confunde cegueira com segurança. A incapacidade de se relacionar… porque se sente sempre demasiado vulnerável – o paradoxo entre a negligência da Vida e a ilusão de proteção.
O Peixe
Quando pensamos em peixes, ficamos enredados com o oceano. Nas profundidades, correntes, florestas subaquáticas ou marés. Os diversos ecossistemas, águas rasas, escuridão abissal, leitos tropicais ou tempestades gélidas. Ou podemos ligar-nos a um lago, ou rio, com os seus fluxos de água doce, riachos e ritmos dinâmicos das antigas águas selvagens.
O Vidro e o Leite
Um copo de leite de vidro, isso é outra história. Dentro da vasta história do mundo, o vidro é uma coisa moderna. A fabricação do vidro data de pelo menos 3.600 a.C. na Mesopotâmia e a sua magia é feita de areia, sais minerais cristalizados moldados através de calor intenso. Assim, um recipiente como um copo vidro tem uma memória do fogo feroz e do ar que o moldou. Também tem a memória de ser areia, numa praia, ou, no fundo do oceano. Antes de ser areia, poderia ter sido parte de uma rocha dentro de uma montanha, desmoronando-se por forças corrosivas depois de ter sido gerada pelo fogo primordial.
E depois há o leite. Vaca, cabra, soja, ou amêndoa, todas as fontes de um líquido branco nutritivo que sacia a nossa sede e reabastece o nosso corpo. Não bebo leite animal por tudo o que representa: bezerros a serem levados das suas mães para lhes roubar o leite. Demasiado simplista, mas não deixa de ser verdade na indústria de lacticínios industrializada. Bárbaro, para dizer o mínimo. Portanto, vamos ficar com alternativas vegetais ao leite.
Cartografia da Irrelevância – uma metáfora da Modernidade dissociada
O Cambridge Dictionary define irrelevância como algo que não está relacionado com o que está a ser discutido ou considerado sem importância. Quando decidimos, na sua maioria inconscientemente, o que é irrelevante dentro da nossa identidade e crenças, estamos também a decidir sobre a separação e ruptura. Coisas irrelevantes ficam desconectadas, separadas, e fora de cena, literalmente. Rompemos relações com algo quando o julgamos fora do nosso padrão de realidade. Torna-se estranho e sem relação.
Armazenamos não-relações, não-acontecimentos, não-realidades, não-emoções e todas estas vibrações tangenciais que não reconhecemos numa paisagem irrelevante. Mas, porque é irrelevante, não temos um mapa deste vasto território.
Tendemos a evitá-lo, mas ele continua a crescer. É um lugar algo desarrumado e aleatório, como um sótão ou uma cave, para onde enviamos tudo o que não parece encaixar ou importar, para que possamos continuar a funcionar. De tempos a tempos, podemos perder-nos nele, pois é complexo e selvagem.
Este peixe que vive num copo de leite chama-me às limitações culturais da realidade ocidental moderna percebida e aceite. Quão estreito é o nosso campo de percepção, quão monstruosas são, consequentemente, as nossas paisagens irrelevantes. Ser cego para as fronteiras da cultura faz de todos nós um peixe num copo de leite, encontrando consolo nas paredes apertadas em volta.
Numa realidade sistémica com várias camadas, será que existem coisas irrelevantes?
Como podemos aventurar-nos na (re)ligação com o que está condenado a ser irrelevante?
Será que estamos dispostos a atravessar essa fronteira?
Pois por vezes, há tesouros escondidos nos lugares irrelevantes. Tenha em mente que o movimento oposto à irrelevância é ligar-se, juntar-se e amarrar-nos numa realidade entrelaçada. É a diferença entre ser um pequeno peixe domesticado num copo de leite ou um animal selvagem a atravessar potentemente o mar aberto. Para um peixe nadar ferozmente através do seu ambiente, nada é irrelevante. Responde a estímulos à sua volta, nadar mais depressa, mudar de rumo, ir mais fundo, atacar ou esconder-se. Cada indução do contexto está viva e permeia a resposta dinâmica da criatura com barbatanas. Responde e actua rapidamente a partir de todo o corpo.
Ao trabalhar a partir do limiar da realidade consensual, tentando encontrar outras formas de estar no mundo (resgatando alternativas para os desafios violentamente destrutivos da modernidade), precisamos de estar conscientes destas paisagens irrelevantes. O que é irrelevante para os seres humanos pode ser absolutamente urgente para uma árvore ou um rio.
Por agora, ainda dentro do copo, podemos recordar a vastidão da água cristalina, recordando a montanha que gerou a areia e o vidro. O fogo que tornou tudo possível. Agradecemos o leite como alimento primordial. À medida que o que liga e entrelaça desperta no coração, começamos a mover-nos lentamente através da membrana da irrelevância que tudo separa.
O que é irrelevante para ti?
Que tesouros de ligações podes encontrar na tua paisagem de irrelevâncias?
🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência.
Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.