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“Temos de ir para dentro”
Interior Colonizado
É uma expressão com que me deparo frequentemente, por ser quase um mantra nos circuitos contemporâneos de desenvolvimento pessoal, espiritualidade e terapias várias: “Temos de ir para dentro.” “Conectar, alinhar com o interior ou o verdadeiro eu.” “Segue o teu interior.”
A pergunta que me surge sempre é: mas… para dentro de quê? A ideia de um “dentro” como um espaço puro, autêntico, individual e separado, onde se encontra a paz ou as respostas, é já, em si, um produto da lógica moderna, eurocentrada do sujeito. O que chamamos de dentro talvez não passe de uma casa construída pela modernidade. Uma arquitetura subtil, invisível, de paredes polidas com ideais de autonomia, pureza e auto-realização. Entrar neste dentro é entrar num labirinto de espelhos onde o eu se procura a si mesmo como tesouro final, a tentar tapar o buraco do mundo com respostas privadas.
Ecologicamente falando este dentro não existe separado das redes de relação que nos compõem. Quando “vamos para dentro”, levamos connosco as paisagens culturais que habitamos, os traumas herdados e coletivos, as leis do que achamos normal que carregamos no corpo, as expectativas modernas de um eu que deve ser “curado”, “pleno”, “realizado”. E sobretudo levamos a própria estrutura do que significa “um eu”.
Mas a vida, a verdadeira, imprevisível e desarrumada, antiga e fecunda, não conhece paredes. Não conhece o dentro como um lugar separado, conhece apenas o entre. O que chamamos de “interior” é, na verdade, uma rede de raízes. O que sentimos dentro de nós, pulsa com as memórias dos mortos, as ausências coloniais, as canções dos rios feridos e as dores silenciadas de um planeta inteiro. O dentro é já o mundo a atravessar-nos.
É a interioridade que não se fecha, ao ser porosa e ao respirar. É a escuta da teia, o estar com o problema, com as dores e alegrias que nunca foram só nossas.
Como escrevo em Paisagens Afetivas, não existem apenas paisagens exteriores, já sistematicamente violentadas. As nossas chamadas “paisagens internas” são também geografias ecológicas, carregadas de rios históricos, desertos de silêncio, montanhas de pertença e florestas de memória. Não somos entidades isoladas mergulhadas em oceanos de técnicas de introspeção. Somos vida em vida.
O perigo do “interior normopático”
O convite fácil para “ir para dentro” demasiadas vezes reaproveita o eu como centro e objeto de aperfeiçoamento. Privatiza a dor, na exigência e ilusão que “basta resolver a tua relação contigo”. Despolitiza a angústia ao separar o olhar do mundo: “não olhes para o mundo, olha para ti”. Evita o relacional ao não se envolver nas estruturas que nos ferem uns aos outros, mantendo a inocência de um eu supostamente puro.
Muitos dos discursos contemporâneos de bem-estar transformaram o sofrimento num problema exclusivamente subjetivo, o que reforça o sujeito isolado e desconectado. É um convite a um dentro desresponsabilizado, um retiro narcísico da complexidade viva, numa continuação do corte secular entre o corpo e o lugar.
E se o “dentro” for um “entre”?
Outras formas não hegemónicas e normopáticas de psicologia, as plurais e contextuais oferecem outras ecologias deste interior, mais vivo. O convite é a assumir que não há dentro, mas entre. Porque o que chamas “o que sinto dentro” é já o pulsar de sistemas familiares transgeracionais; feridas coloniais ainda abertas; múltiplas ecologias vividas e perdidas; inúmeras relações com os seres que habitam e habitavam o território; e principalmente a fome de pertença deslocada da modernidade.
Assim, ir “para dentro” talvez precise ser renomeado, ir para dentro da teia e do emaranhado. Porque a verdadeira jornada interior não nos isola, envolve-nos e devolve-nos à vida.
Quando afirmamos “o que importa é ir para dentro”, cortamos o convite relacional, seguindo a exigência normopática na ansiedade de resolver logo; na urgência de estabilizar a identidade; na rejeição do incómodo, da incerteza e do paradoxo; no medo visceral da complexidade do mundo partilhado. Estes são hábitos e respostas da linguagem conhecida, são modos de sobrevivência. Mas habitar o “entre” é sentar-se com o desconforto, sem precisar de o resolver. Sem precisar de encontrar “a verdade interior” como bem de consumo e penso rápido de dores intergeracionais.
Então, sim, há trabalho a fazer, talvez não seja “ir para dentro” como nos ensinaram. Possivelmente temos de reaprender a respirar na teia maior que já nos respira. Tal como o micélio nos recorda, o interior e o exterior não estão separados, são filamentos de um mesmo corpo vivo.
Com este movimento não se abdica ou ameaça a jornada íntima, é uma dança de contração e dilatação. É saber que o que pulsa na nossa pele pulsa também nas florestas, nas extinções e nas violências que sustentam o conforto.

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