E se nos aventurássemos a olhar para os contos como mapas para além da psicologia humana?
E se, os contos fossem arcas do tesouro de metamorfose e ligação profunda?
E se, na malha das suas acções, territórios e personagens se encontrassem músicas antigas de relações mais-que-humanas? As que nos enriquecem e que nos dizem que para sermos humanos, nunca o podemos ser sem os animais, as plantas, o chão, as estrelas ou os elementos, pois nunca estivemos sozinhos.
Esta tem sido a minha proposta de investigação-oração com a Eco-Mitologia.
De facto, re-imaginar os contos como cartografias ecológicas de metamorfose abre-nos a possibilidade de nos olharmos de forma integrante e profundamente participativa. Os fios das histórias, no fundo desta arca do tesouro, tecem sobre a sabedoria primal dos padrões fecundos das estações, de semear, colher, caçar, tecer, morrer e regenerar. Registam em símbolos e metáforas os movimentos cíclicos das comunidades humanas integradas na paisagem.
De facto, com a sua origem há mais de 7 mil anos, muito dos contos (de fadas, maravilhosos, populares) que hoje achamos ser para crianças {1} são mapas de complexa e intergeracional sabedoria colectiva. Cartografias de relações e padrões ecológicos, das estrelas e estações às migrações e maturação dos frutos, que retém a sabedoria de viver em determinado lugar. Os contos são cosmologias inteiras. E também registo de memória antiga de eventos catastróficos. Pelo olhar humano integrado numa paisagem familiar, onde todas as espécies e elementos são parentes, os ritmos dos múltiplos ciclos entrelaçados são codificados em mitos e ritos. Soprados, cantados e contados em protocolos sagrados e decisões práticas, com conhecimento das malhas do lugar e estação. Porque sempre fomos a forma humana do lugar.
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Como breve exemplo deixo-vos uma história muito simples, do sul de França, retirada do livro Metamorphosis – the dynamics of symbolism in European folk tales, de Francisco Vaz Silva. O conto reza assim: “Havia uma costureira que vivia na parte alta da aldeia com a sua irmã. Quando a conheci, era muito velha. Costumava deitar-se no dia de Todos os Santos, até ao regresso das andorinhas.” Este conto singelo fala do ritmo da velha costureira que adormece durante todo o inverno na parte alta da aldeia. A velha tem um tom de bruxa. E o facto de ser costureira também é bastante simbólico e primevo, pelas linhas da metamorfose e mudança de pele.
A costureira e a associação a um desaparecimento invernal não é de modo algum casual. O autor relaciona a retirada anual da velha costureira para a cama, no início de novembro, com o aparecimento das Plêiades. As Plêiades marcam consistentemente na Europa, como em muitas outras partes do mundo, a transição entre estações contrastantes. O despertar da velha relaciona-se com a andorinha que começam a cantar em fevereiro, o antigo primeiro dia do verão, sendo a altura em que os ursos e as cobras, acordam da hibernação. Temos então uma velha costureira, que vive uma hibernação semelhante à da serpente e reaparece numa altura de renovação sazonal. A velha costureira personifica a serpente fada e os ciclos de renovação, seguindo o ciclo de regeneração das estações. Com ela tem uma aprendiz de costureira, a sua irmã mais nova, que segue o mesmo ciclo de maturação. Neste breve conto estão contidas camadas fundas da urdidura do tempo menstrual e ecológico, mudança de peles, fecundidade e morte. Sendo as duas personagens arquétipos de ecológicos de ritual e iniciação, contento profunda sabedoria ecológica.
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Apesar da riqueza de interagir com os contos apenas de um ponto de vista psicológico, é preciso atentar às limitações da psicologia antropocêntrica e hiper-individualista ocidental, que limitam a complexidade, biodiversidade e sabedoria ecológica destas histórias. Não são apenas sobre as nossas ansiedades e angústias humanas.
Este olhar fragmentado contemporâneo reduz a natureza e complexidade dos contos, tornando invisíveis as relações antigas. Porque quando levantamos a tampa da arca do tesouro, o que encontramos lá dentro é muito mais do que a psique antropocêntrica recente. Descobrimos uma consciência profundamente relacional e ecológica. Onde os humanos podem ser animais e os animais falam, onde as florestas, os rios e as montanhas são lugares de acesso ao outro mundo. Onde o encantamento é o mistério do mais-que-humano. Onde a sabedoria é animista e integrada.
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{1} é importante notar o que “ser para crianças” realmente significa neste contexto cultural. Algo que é para crianças costuma ser também rotulado de “sem interesse, “demasiado simples” ou mesmo “irrelevante” por ser naturalmente hierarquicamente inferior. Pensemos agora de como estes rótulos extra nos dão informação de como etiquetamos a infância.
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🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência.
Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.