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O significado da Doença
Desde a mais pequena infância que passei muito tempo em exames, hospitais, diagnósticos e diferentes protocolos e ciclos de medicamentos. Desde pequena que sempre me disseram não saberem o que se passava com o meu corpo, mas que tinha de tomar comprimidos, uns quinze por dia, até ao final da minha vida. A dada altura rebelei-me e deixei de tomar tudo, porque queria viver e não apenas sobreviver. Aventurei-me a sair do carrossel médico, por minha conta e risco. Falo hoje a partir deste corpo, que honro profundamente em todas as suas “falhas,” em tudo o que não me permite fazer. Mas que sempre foi afinal o meu corpo, sempre soube o meu nome e sempre carregou as minhas dores e alegrias. O trauma ficou impresso em mim, por conta da violência dos múltiplos diagnósticos, da crueldade das inúmeras consultas, dos invasivos toques nunca consentidos, da desumanidade dos diversos exames. Onde nunca fui vista, escutada, procurada e muito menos encontrada –simples e brutalmente carrego um corpo ao qual foram sucessivamente impostas soluções de normalidade.
Após os vários anos e ciclos de violência, tanto corporal como emocional, nas práticas da medicina moderna ocidental, também procurei outros significados e referências. No início cheiravam a liberdade, mas rapidamente se abriu novo buraco por onde facilmente escorrega a dignidade de estar num corpo “não normal”. O profundo capacitismo e ignorante solucionismo cultural em que nos encontramos retorce tudo a seu favor.
Comecei a procurar os significados emocionais e espirituais de cada maleita. E claro, iam fazendo sentido. Mas o problema do “significado” da doença é a hiper-responsabilização individualista de processos colectivos dos quais não temos controlo. Fala de um absurdo niilismo em que se fica como único culpado de ter apanhado determinada doença, de como, de alguma forma, falhamos moral ou emocionalmente. Ignorando a complexidade de cada ser, e superficializando processos biológicos a significados exclusivamente humanos e de “bem-estar” moderno –o que violentamente ignora e silencia tanto…
O pior de tudo é que estes “significados” que pretendem ser universais são sempre produzidos por camadas culturais e contextuais (sociais, políticas, históricas), mas como tocam em experiências comuns humanas tendem a auto-justificar-se e tornam-se “surdos” perpetuando a violenta ideação de “a culpa é só/principalmente tua.” A culpa individual, ou quem sabe até kármica (tal é a perversidade), de ter um corpo com possibilidades limitadas e não responsivo às exigências e expectativas modernas do que significa ser ou estar saudável. A psique eurocentrada, profundamente absolutista, não consegue ver a violência destas perspectivas que silenciam a diversidade, optando pelo solucionismo rápido do status-quo. “Não fizeste o suficiente”, “deverias ter feito x, y ou z”. Quando talvez poderia honrar o corpo tal como ele é, em toda a sua perfeita imperfeição, em todas as suas dores e impossibilidades, dignificando os momentos que precisa de parar, venerando a sua sabedoria.
Não preciso dos significados abstratos com que queres rotular e diagnosticar o meu corpo e processo.
Não preciso de soluções rápidas e eficazes para “ser normal”.
Só o meu corpo sabe o meu nome.
{imagem: Vanitas Still Life (ca.1665–1670) painting in high resolution by Jan van Kessel. Original from The National Gallery of Art. Digitally enhanced by rawpixel.}
🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência.
Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.