TEMPO DE LEITURA – 3 MINUTOS
Musas Domesticadas
Nos corredores frios dos museus europeus, onde o silêncio reverente é confundido com neutralidade, jazem corpos e artefactos arrancados à força, objetos vivos transformados em provas mortas de um poder auto-proclamado como civilizador. A descolonização dos museus não é somente um debate sobre devoluções ou etiquetas corrigidas. É uma questão ética radical que exige reconhecimento institucional do roubo estrutural e das narrativas violentas que continuam a sustentar o prestígio museológico europeu.
Como pós-graduada em museologia e património, reconheço o paradoxo de cuidar de objetos cuja própria presença foi construída sobre a negação do cuidado para com os seus mundos de origem. É aqui que o património se revela como paradoxo, e os gestos de conservação que podem ser, simultaneamente, de apagamento.
Mas vamos mais fundo, até à própria etimologia da palavra museu. Derivada do grego mouseion, “templo das musas”, a palavra carrega uma ironia trágica, o espaço que outrora era sagrado e vivo, dedicado às musas do canto, da memória, da dança e da inspiração plural, tornou-se um cofre onde o conhecimento é confinado. As musas domesticadas, e a inspiração separada do corpo, do ritual e do lugar, do território e do tempo. Um mouseion fora do seu lugar vivo é já uma operação de exílio, uma separação da poesia, da relação e do contexto. A museologia moderna herda, assim, um gesto colonial original, o de separar para estudar, roubar para preservar, silenciar para legendar. A descolonização dos museus não será completa até que se reconheça que o arquivo e a museificação da vida é, ela própria, uma forma de pilhagem e separação simbólica.
As musas não pertencem às vitrines, pertencem ao vento, ao canto, ao chão onde foram invocadas pela primeira vez.
Talvez as musas confinadas nos museus, como os espécimes secos nos herbários, sejam a imagem mais clara da domesticação do sensível: arrancadas do seu lugar de origem, da sua linguagem viva, do seu ciclo e contexto, para caberem numa narrativa linear e morta, sempre exposta e explicada. Mas até Goethe, poeta, cientista, herético da botânica moderna, recusava tal redução. Para ele, as plantas não podiam ser compreendidas enquanto cadáveres prensados entre papéis, pois a sua verdade residia no movimento, na relação, na forma que muda com o tempo e o lugar. A observação e envolvimento atentos, em presença, era a única via para perceber o ser vegetal como entidade viva, não como objeto. Goethe sabia, já no século XIX, o que tantos ainda não querem ver, que conhecimento sem relação é dissecação. E talvez o mesmo se aplique às musas, aos contos, às culturas, que quando confinadas, expostas e privadas do seu chão, tornam-se apenas matéria de arquivo.
É preciso voltar ao lugar onde a vida pulsa e escutar o que ela diz, sem a calar com etiquetas.
Além disso, reduziram-se as Musas a entidades visuais, contempladas de longe, separadas do seu chão, do canto, do corpo e do enredo ecológico e relacional. Tal como exploro no meu texto sobre Da Dominação ao Cuidado, a centralidade da visão no pensamento moderno é uma estética colonizadora que rompe com a escuta, o toque e o entrelaçamento. Os museus, nesse sentido, tornaram-se vitrines da hegemonia moderna. Por um lado, pretendem mostrar o mundo, mas recusam a situar-se dentro dele.
E, no entanto, dentro desta sombra, algo pulsa. Os museus também podem ser lugares férteis de reeducação, desconstrução e reaprendizagem relacional, se forem reimaginados para além da lógica do espólio, do controlo e da neutralidade. Como espaços de memória viva e insurgência sensível, podem acolher narrativas plurais, diálogos sensoriais e práticas de escuta ética. Um museu que ousa ser rizoma e não montra, chão e não vitrine, pode ajudar-nos a aprender com o que foi ferido e com o que permanece vivo. Não para resolver a história, mas para nos implicarmos nela com responsabilidade e cuidado.

Ler artigos relacionados
{Ecopsicologia}
-

Musas Domesticadas
-

Hiper Individualismo ou Individualismo Colectivo
-

Espiritualidade em Ruínas Vivas
-

Pontos Cegos
-

Conversa Imaginada entre Lorraine Code e Nêgo Bispo
-

A Transpiração da Imanência
-

Ciência Indígena
-

Problemas supercomplexos e pensamento rizomático
-

Ideias que o Mundo Moderno Esqueceu
-

De herói a composto
-

Uma Viagem pela História do Bem-Estar
-

Síndrome de Mudança da Linha de Base Psicológica
-

Sonhar com o Younger Dryas
-

Constelação de Relações
-

Temos de ir para dentro
-

À beira da floresta queimada
-

O Tear
-

Ecopsicologia Relacional
-

Rede de Indra & Rede de Arrasto
-

Da Dominação ao Cuidado
-

Cuidar como prática de rendição
-

“Natureza” não é neutra, cura ou refúgio
-

Quando o Eu se Lembra que é Território
-

Desaprender ser Boa Pessoa
-

Musas Domesticadas
-

Hiper Individualismo ou Individualismo Colectivo
-

Espiritualidade em Ruínas Vivas
-

Pontos Cegos
-

Conversa Imaginada entre Lorraine Code e Nêgo Bispo
-

A Transpiração da Imanência
-

Ciência Indígena
-

Problemas supercomplexos e pensamento rizomático
-

Ideias que o Mundo Moderno Esqueceu
-

De herói a composto
-

Uma Viagem pela História do Bem-Estar
-

Síndrome de Mudança da Linha de Base Psicológica
-

Sonhar com o Younger Dryas
-

Constelação de Relações
-

Temos de ir para dentro
-

À beira da floresta queimada
-

O Tear
-

Ecopsicologia Relacional
-

Rede de Indra & Rede de Arrasto
-

Da Dominação ao Cuidado
-

Cuidar como prática de rendição
-

“Natureza” não é neutra, cura ou refúgio
-

Quando o Eu se Lembra que é Território
-

Desaprender ser Boa Pessoa







































