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Mas o que é a prática afinal?
Icebergue num Alguidar
Disse esta frase a primeira vez porque, numa aula, não me lembrava da típica expressão lisboeta “meter o Rossio na rua da Betesga”, e a minha imaginação tomou conta da ocorrência e criou esta imagem. Precisava desta metáfora para demonstrar a escala indeterminada e avassaladora dos Problemas Perversos (os problemas perversos são complexos, com muitos factores interdependentes que os tornam aparentemente impossíveis de resolver; factores frequentemente incompletos, em fluxo e difíceis de definir) que nos envolvem hoje em dia. O emblemático alguidar de plástico português com um gigantesco icebergue a derreter, mimetizando o paradoxo e impossibilidade do grande Rossio metido na rua mais pequena de Lisboa, a Rua da Betesga.
No momento achei-a engraçada, mas desde aí tem voltado para me morder. Acabei por a criar, apenas para a conseguir ver de fora. Claro que as imagens da imaginação têm dimensões e movimentos irreplicáveis, pois a dança avassaladora das escalas de tempo e espaço entre o alguidar e o icebergue é algo desconcertante na imagem viva que me tem assombrado.
Surge-me agora como uma pungente metáfora da modernidade, na sua crueza inescapável: um simples objecto quotidiano que serve para limpar (todos temos pelos menos um em casa), feito de plástico, com um gigantesco Icebergue dentro.
O Icebergue derrete e acaba por desaparecer, mas o alguidar fica. Inexorável. O colossal Bioma gelado escoa. Mas o alguidar permanece, apenas silenciosamente e sem vida. Asséptico e limpo, mas sem alma.
A Psique de Plástico
A Psique de Plástico tem várias facetas assépticas, dogmáticas e cristalizadas. Desde a superficial espiritualidade transcendente e o narcísico auto-conhecimento estilo influencer-pop, que ficam para outra ocasião. A Psique de Plástico, tal como o plástico e tantos outros poluentes produzidos pela modernidade, reclama-se fora, transcendendo o necessário ciclo de decomposição, putrefação ou apodrecimento – ou a insidiosa procura da imortalidade. Assumindo uma frieza para se distanciar do que a possa afectar, afinal o controlo emocional equivale a maturidade, certo? Resistindo teimosamente a pertencer e a dissolver-se no ciclo da Vida. Reclama imortalidade e perenidade, química e material, numa presença que se acumula, cada vez mais dissociada, pesada e tóxica. A Psique de Plástico é limitada, antropocêntrica e redutora. A Psique de Plástico tenta inexoravelmente replicar, de forma cristalizada e dogmática, versões puras ou clássicas de métodos e estruturas, normalmente sem atender às especificidades do contexto onde se insere.
Por tudo isto, a Psique de Plástico também se refere à negação e dissociação na implicação dos danos perpetrados pelo conforto da modernidade, assim como à profunda limitação da imaginação e possibilidades fora do espectro do domesticado. E é a esta última que me quero referir aqui, a restrição da nossa (minha) imaginação.
Quero dizer que num confronto real entre um alguidar e um Icebergue, o alguidar perderia redondamente! Mesmo os milhões de toneladas de plástico à deriva no oceano, se tormarmos em conta o tempo profundo das eras geológicas.
Apesar de todas as profundas alterações de temperatura que observamos hoje, a vastidão, peso e as inúmeras eras e ciclos contidos num Icebergue, facilmente devorariam e esmagariam um alguidar. Óbvio, pensamos nós! Apesar da insidiosa perenidade do plástico, esta é ainda bastante jovem quando confrontada com a perpetuidade e amplitude dos gelos do Mundo. Acontece que, esta imagem que me assombra como arquétipo de modernidade, não está completa no seu ciclo. Tal como a Psique de Plástico, esta imagem imaginada está truncada do movimento de desdobramento da Vida, agrilhoada nas possibilidades de ver fora de si própria, tendo aprendido a manter-se de privilegiada e impermeável como resposta a um mundo em colapso.
Avento que a imagem integral seria que a água deixada pelo derretimento do Icebergue continuaria viva e pulsante, e os complexos processos que fazem a Vida emergir permaneceriam em tempo profundo, tomando outras formas e caminhos. O Alguidar metafórico, aquele que prevaleceu ao embate com um Icebergue milenar, seria inevitavelmente digerido por larvas e fungos, decomposto e posto ao servido da nutrição que ampara a Vida – voltando inevitavelmente ao grande ciclo.
Afinal, as imagens arquetípicas vivas são sempre surpreendentes, tal como num sonho desbravam caminhos assombrosos se assim as deixarmos à solta!
🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência.
Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.