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Hiper-individualismo ou Individualismo Colectivo

 

Ando há algum tempo para me organizar e escrever sobre este vasto tema: o individualismo. Isto porque quero contrapor a ideia generalizada de que há só uma única forma de individualismo (o egoísta moderno). Na modernidade temos muitas dificuldades em imaginar diferente, tendendo a projectar-nos como a norma de toda a humanidade, mas isto é apenas falta de imaginação e de escuta. Aqui encontram algumas anotações as diferenças entre ser indivíduo no Hiper-individualismo Moderno (sem pertença, sem colectivo, sem chão, imaturo, sempre incompleto, consumidor voraz, cada um por si, “vence o mais forte”, acredita que o colectivo apaga a sua singularidade) e o Individualismo Decolonial e Colectivo (pré, pós, contra ou decolonial, simplesmente por ser fora do arco do herói moderno, em pertença responsável e recíproca no corpo-território colectivo, mas completo, participativo, co-criativo nas suas singularidades).

Pretendo articular o contraste fundamental entre a subjetividade imposta pela colonialidade e a subjetividade relacional e plena que a Psicologia Decolonial e as epistemologias Indígenas procuram recuperar. Uma mini viagem do individualismo hiper-moderno (o “self colonial”) ao individualismo decolonial (o “self em pertença”).

O Indivíduo no Hiper-Individualismo Moderno (O Self Colonial)

O hiper-individualismo é um pilar da colonialidade do ser e do saber. A psicologia hegemónica, sendo Eurocêntrica e nascida da modernidade/colonialidade, promove valores individualistas e minimiza o impacto dos contextos sociopolíticos.

Sem Pertença, Sem Chão, Imaturo

A mente ocidental assume que a identidade pessoal reside no destacamento do mundo e na capacidade de distinguir o eu do “ambiente”. O individualismo e o dualismo cartesiano (mente superior ao corpo) tornaram-se o paradigma social dominante no Ocidente. A colonização tem o efeito psicológico de deixar o colonizado numa crise de identidade perpétua, forçando-o a perguntar constantemente: “Na realidade, quem sou eu?”.

Consumidor Voraz e Incompleto

O discurso dominante do auto-cuidado (self-care) está limitado pela sua relação com o capitalismo e a supremacia Branca. As práticas de auto-cuidado são frequentemente vistas como ferramentas para manter a produção ou como uma resposta à exploração e sobre-extensão. O capitalismo tardio neoliberal procura desumanizar as pessoas e converte a dependência humana numa troca de mercado, transformando-nos em “indivíduos isolados”. A cultura capitalista tardia incentiva períodos frenéticos de sobre-consumo e, em vez de relações, a mercadoria é usada para a classificação social.

“Vence o Mais Forte” (Hierarquia)

A visão Hobbesiana, popularizada na narrativa evolutiva, sustenta que a hierarquia e a dominação têm sido a base da sociedade humana. O otimismo desta narrativa moderna é “modesto” e pessimista, sugerindo que a melhor esperança é “ajustar o tamanho da bota que nos estará para sempre a pisar”. O sistema de poder visa manter aqueles que defendem o projeto colonial no poder através da exploração destrutiva da Terra e dos seres, humanos e não-humanos.

O Coletivo Apaga a Singularidade

A psicologia tradicional prioriza o indivíduo como foco central de estudo. O auto-cuidado moderno posiciona o self como separado da comunidade, negligenciando a responsabilidade relacional para com outros humanos que não são escolhidos. Quero notar que sim, em comunidades constituídas por elementos aderentes ao paradigma moderno, a singularidade de cada um é facilmente afogada em ideações de neutralidade, consenso e universalidade.

O Indivíduo no Individualismo Decolonial (O Self em Pertença)

O individualismo decolonial, que engloba as tradições pré, pós e contra-coloniais, é inerentemente relacional e pluriversal. Ele rejeita a lógica eurocêntrica da separação para abraçar a interdependência radical.

✦ Pertença Responsável e Recíproca

O conceito de vincularidad (relacionalidade) é central, descrevendo a natureza indivisível de todos os seres, incluindo a natureza e o mundo espiritual. O luto ecológico, por exemplo, é uma expressão de parentesco (kinship) e de responsabilidade. A Psicologia Decolonial promove um senso de conexão e pertença que fomenta a interdependência e a responsabilidade coletiva.

✦ Completo e Desenvolvido

O objetivo é o desenvolvimento psicoespiritual, sendo um processo evolutivo e de transcendência que nutre a consciência crítica e encoraja o ativismo espiritual. Permite o buen vivir (conceito Aymara de viver uma vida plena com propósito psicospiritual). A cura é conceptualizada como a reconstituição do self, relacional e coletivamente.

✦ Participativo e Co-criativo na Singularidade

A singularidade individual não é apagada, mas integrada no coletivo (o “self é parte do todo, mesmo que o todo devolva ao indivíduo”). Em vez de ser um herói isolado (o arco do herói), o indivíduo decolonial age como um agente ativo de mudança social, participando na co-criação de conhecimento e soluções, adotando abordagens bottom-up. Ação (praxis) e reflexão são inseparáveis.

✦ Liberdade Sem Dominação (Pluriversalidade)

A História da Humanidade, demonstra que a capacidade de experimentar diferentes formas de organização social (incluindo a liberdade de desobedecer a autoridades sem consequências) é uma parte quintessencial do que nos torna humanos. As sociedades humanas mais antigas moviam-se de forma fluída entre diferentes arranjos sociais, montando e desmontando hierarquias. A liberdade individual pressupunha a partilha, onde as necessidades de todos seriam atendidas para que todos fossem verdadeiramente livres. O objetivo é a pluriversalidade, um mundo onde muitos mundos e muitas psicologias são possíveis.

A Crítica da Colonialidade: O Falso Dilema da Singularidade

A lente decolonial dissolve a falsa dicotomia apresentada pelo hiper-individualismo, nomeadamente a ideia de que o coletivo apaga a singularidade:

  1. A Ilusão da Autonomia Individual: O individualismo ocidental é uma ilusão e é bastante perigoso pensar que se pode fazer tudo sozinho. A ideia de que temos responsabilidade relacional apenas para com aqueles que amamos, e não para com estranhos, está a destruir o tecido da conexão humana nas sociedades ocidentais.
  2. O Foco Não É na Igualdade, Mas na Liberdade: Os sistemas de pensamento convencionais fixaram-se na questão da “origem da desigualdade”. No entanto, as referências que usei para este artigo sugerem que a questão crucial da história humana não é o acesso igual a recursos, mas sim a capacidade igual de contribuir para as decisões sobre como vivermos juntos. O que foi perdido não foi a igualdade, mas a flexibilidade e a liberdade de imaginar e promulgar outras ordens sociais. O que se perdeu foi a possibilidade de participação directa nas decisões e a capacidade de lidar com a diferença, alteridade e não consenso.
  3. O Coletivo Decolonial Promove o Parentesco: O individualismo decolonial baseia-se na ética Ubuntu (“Eu sou porque nós somos, e porque nós somos, portanto eu sou”), que reconhece a nossa conectividade com os outros. Esta abordagem encoraja o empoderamento coletivo e exige que os psicólogos promovam relações mútuas e recíprocas, honrando a experiência vivida. A singularidade é celebrada através da interseccionalidade, que exige ver e atender às diversas identidades que as pessoas possuem.

O hiper-individualismo moderno é uma construção da colonialidade que isola, torna o sofrimento uma patologia e condiciona os indivíduos a trocarem a sua humanidade por “pequenos pedaços de poder”. Em contraste, o individualismo decolonial não é a ausência de individualidade ou autonomia, mas a sua completa realização através da interdependência e da responsabilidade para com o corpo-território coletivo.

Entre o Espelho Estilhaçado e a Pele Viva do Comum

No hiper-individualismo moderno, o “indivíduo” é uma ficção performada em isolamento. Sem chão, sem laços, sem contexto, o self colonial nasce da separação cartesiana, da lógica de escassez e do medo do comum. A sua singularidade é uma ansiedade, nunca completa, sempre em escassez (para)ontológica. Existe contra o mundo, não com o mundo. A sua liberdade é um modo de fuga: não se trata de viver como se pertence, mas de escapar de qualquer coisa que possa parecer vínculo. Aqui, a individualidade é uma mercadoria, personal branding, auto-otimização, performance de valor.

Mas este modelo falha no mais fundamental: não reconhece a dignidade ontológica do ser situado. O indivíduo moderno é um espelho estilhaçado e depois pedem-lhe que se ame com base nos cacos.

Já no individualismo decolonial, a singularidade e autonomia não desaparecem, mas enraízam-se. O self em pertença sabe-se parte, não fragmento isolado. É alguém em comunhão com o corpo-território, com as suas linhagens, com os mortos e com os que ainda virão. A sua dignidade não depende do reconhecimento público nem do sucesso neoliberal, mas do compromisso relacional que cultiva com o coletivo vivo. Aqui, o valor não se mede e a liberdade não é separação, reconhece-se a capacidade situada de responder com maturidade e responsabilidade.

Neste modo de ser, a singularidade não é apagada pelo coletivo, é enraizada nele.
O indivíduo decolonial é mais inteiro, não menos. Participa no comum sem se dissolver, e é reconhecido na sua diferença não como desvio, mas como contribuição.

Acredito que, em parte, é esta erosão de dignidade de valor intrínseco e corte de parentesco e relacionalidade que torna o colectivo e o comum tão desafiante na linhagem moderna. Afirmo o valor radical e da dignidade intrínseca do indivíduo situado no campo coletivo da alteridade. Não como exceção, elite ou heroísmo. Mas como ser relacional pleno, digno por existir, cuja diferença não ameaça o comum, entrelaça-se naturalmente na sua rica singularidade, fertilizando o comum. Pois a dignidade não vem depois da relação. Ela é relacional. Neste paradigma o valor não é atribuído por função, produção ou mérito, apenas por presença viva, incorporada.

O indivíduo decolonial é como uma pedra num rio: completamente ele próprio, mas inseparável da corrente. Não precisa ser removido para brilhar, pois brilha no lugar que ocupa, poroso à água, enraizado no leito, em comunhão com todas as outras pedras que moldam o fluxo.

Referências

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{Ecopsicologia}

🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência. 

Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.