TEMPO DE LEITURA – 5 MINUTOS

Espiritualidade em Ruínas Vivas

 

Há umas semanas derramei-me em erupção num post denúncia e manifesto sobre o uso insidioso da metáfora dos espelhos em circuitos terapêuticos e “espirituais”. Mas essa é apenas uma das muitas narrativas espirituais abusivas, em metáforas pseudo-terapêuticas sempre na esfera do indivíduo e nunca sistémica, cultural, e cruzes credo, jamais histórica, social ou política. Metáforas, sem empatia ou contexto, completamente implicadas em sistemas de violência, que nunca se abrem à responsabilidade do extrativismo, patriarcado, machismo ou misoginia.

E o paradoxo é que como cultura precisamos de reaprender a capacidade para habitar o conflito, sem que seja guerra, humilhação ou violação. Por um lado somos puristas e evitamos o conflito, mas as mulheres teem de suportar tudo em nome de uma pseudo dignidade.

Para reconstruir em maturidade, mas não necessariamente com consenso, precisamos de recordar a dignidade e o valor intrínseco de todos, e assumir as muitas camadas de violações e indignidades intergeracionais.
Estes são temas que critico há anos, pela sua profunda violência pseudo-neutra e pela visão binária. Pois há dores que não cabem em mantras. Há feridas que não se dissolvem em luz branca. Há histórias da terra, de corpos e povos, que foram esmagadas por cima de tapetes de “consciência elevada”. E aqui bato o pé e recuso. Recuso a espiritualidade destilada e asséptica, individualista e comercial que, em vez de curar, anestesia.

Que transforma injustiça em destino, trauma em escolha e violência em espelho.

Convido-te a práticas de reparação lenta, contextuais e incorporadas, devolvemos a espiritualidade ao chão. Chão corpo. Chão história. Chão coletivo. Aqui, a espiritualidade é vínculo, na escuta do que a tua linhagem silenciou. É aprender a discernir quando “cura” significa calar, e quando “paz” é apenas obediência.

Estas práticas não são receitas, mas bússolas singulares em territórios intergeracionais e partilhados. Travessias em camadas, umas que cantam e outras que gritam. São convocações para:

  • Desfazer o ‘glamour’ das narrativas kármicas que culpabilizam quem sofre.
  • Re-aprender o luto como gesto espiritual.
  • Honrar o conflito como parte do campo vivo.
  • Distinguir voz interior de ego espiritual.
  • Cultivar vínculos com território e comunidade, em vez de fuga metafísica.

Acendemos a fogueira para nomear, em discernimento, outras narrativas espirituais abusivas a operar como perfume sobre ferida aberta, como luz que apaga sombra em vez de a honrar. Estas narrativas têm muitas máscaras, mas um núcleo comum: transformam trauma, violência ou assimetria em “lições”, “escolhas” ou “espelhos pessoais”, desresponsabilizando sistemas e perpetuando abuso sob o manto da elevação espiritual. Segue-se uma lista de outros abusos comuns:

“Tudo o que te acontece é reflexo do teu interior.”

Aaui a violência que sofreste é um reflexo da tua vibração interna, ou dos teus “padrões não curados”. O que ignora a assimetria histórica e política dos corpos e contextos. Reforça a culpa da vítima.
Mas nem tudo é reflexo, muito é estrutura, sistema, legado. Escutar o dentro não é negar o fora.

“Tu escolheste esta dor antes de nascer.”

“A tua alma pediu esta experiência para evoluir.” Justifica sofrimento desnecessário como “kármico” e torna o abuso uma escolha mística, não uma violência real. Mas podemos acolher o mistério das dores sem lhes atribuir necessidade espiritual automática. Nem toda a dor é lição. Às vezes, é só injustiça.

“Tudo acontece por uma razão.”

A narrativa de que o mal tem sempre propósito superior. O que apaga a responsabilidade, remove agência e reduz a complexidade da dor humana e ecológica a um “plano”. Nem tudo tem que fazer sentido. Algumas dores não são “por” nada, mas ainda assim precisam ser sentidas, cuidadas, testemunhadas.

“Ele/a está apenas num nível de consciência mais baixo.”

As pessoas que ferem ou abusam estão apenas “menos despertas”. Classifica os abusadores como espiritualmente “inferiores”, sem responsabilizá-los. Transforma abuso em atraso evolutivo. Acontece que a ferida não se resolve por cima, com “níveis” ou escadas, mas entre, com justiça, reparação e presença.

“Escolhe vibrações mais altas e isso não te afetará.”

Sofres porque estás vibracionalmente “alinhada com o drama”. Rejeita o sofrimento como falha espiritual e estigmatiza emoções densas como impurezas. Dor e densidade são parte da vida relacional e do luto ecológico. Não são falha de vibração, são terreno de vínculo, parentesco e travessia.

“Tudo é perfeito como é.”

Até a violência é uma expressão divina da perfeição. Mistura misticismo com passividade. Pode desmobilizar ação ética e validação da dor. O mistério não é sinónimo de não tocar no mundo.

“Perdoa para evoluíres.”

Só quem perdoa “transcende”. Usa o perdão como atalho espiritual, sem exigir justiça, arrependimento ou mudança. Perdão não é obrigação. Às vezes, o que liberta é o rompimento com dignidade, não o perdão.

. . .

A espiritualidade que recusa encarar a ferida real do mundo, com as suas assimetrias, colonizações e dores concretas, é apenas uma forma de negação.

Aqui procuramos a maturidade do enraizamento e não a elevação; não quero subir, mas sentir em responsabilidade, sustentando o que é demasiado para caber em dogmas limpos e absolutos. Trabalhamos com o que transborda e derrama pelos cantos da normopatia.

Ler artigos relacionados

{Ecopsicologia}

🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência. 

Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.