A Ciência Nativa

Leis Naturais de Interdependência

Antes de mergulhar no texto tenho algumas recomendações a fazer. Nomeadamente pelo perigo de romantização ou essencialização do Conhecimento Indígena, pois pode aparentar que o artigo se aproxima de uma representação quase idealizada da “Ciência Nativa”, como se fosse um antídoto puro e sem tensões ao paradigma ocidental. O que, inadvertidamente, apaga a diversidade, os conflitos e as complexidades vividas dentro e entre os povos indígenas. É fundamental reconhecer explicitamente que mesmo dentro da Ciência Nativa há multiplicidades, dissidências, discordâncias e evolução. Também quero reconhecer que pode ser sentida uma dicotomia excessiva entre paradigmas, arriscando reforçar binarismos simplistas (mecanicismo vs. vida, controle vs. harmonia). O que, paradoxalmente, reproduz a lógica que pretendo transbordar. É, por isso, importante invocar intersecções e zonas de contacto, pergunto: há formas de ciência ocidental que já se movem rumo ao relacional? Onde as fronteiras estão se dissolvem?

Por fim é importante localizar a minha voz, pois esta não pretender ser uma escrita impessoal, pseudo-universal e muito menos de especialidade, sobre a Ciência Nativa. Este texto foi inspirado em fontes indígenas e académicas, mas escrito por alguém fora dessas tradições. Reconheço a necessidade contínua de escuta, consentimento e responsabilidade na partilha de saberes ancestrais.

E se a ciência não fosse apenas um conjunto de factos objetivos sobre o mundo, mas sim uma forma de viver nele?

A visão ocidental tende a separar o observador do observado, tratando o conhecimento como algo a ser extraído da natureza, informação sobre a natureza. “Aprender sobre a natureza em vez de com a Natureza”, como diz o ancião Tiokasin Ghosthorse, que tive o privilégio de conhecer no ano passado. Esta frase refere-se a um paradigma alternativo, situado, profundo e antigo, que aborda o saber não como uma coleção de categorias separadas, mas como relação em fluxo.

O académico Pueblo, Gregory Cajete, articula este paradigma sob o termo Ciência Nativa. Longe de ser um repositório de conhecimentos arcaicos, a Ciência Nativa é um paradigma holístico para “perceber, pensar, agir e ‘chegar a conhecer’”. Trata-se de uma epistemologia viva que integra o empírico com o espiritual, o intelectual com o intuitivo e o humano com o não-humano. Conforme define Cajete, a Ciência Nativa “nasce de uma participação vivida e narrada com a paisagem natural”.

Exploramos aqui alguns princípios da diversa e contextual Ciência Nativa: interconexão, lugar, história e cerimónia. Para revelar uma “eco-filosofia” viva, complexa e profundamente relevante. Ao fazê-lo, descobrimos uma visão do mundo que não só desafia as nossas conceções ocidentais de ciência, mas que também oferece perspetivas vitais para o nosso tempo. Para compreender estas cosmogéneses, devemos primeiro mergulhar na sua visão de mundo fundamentalmente relacional.

Os Fundamentos da Ciência Nativa

Uma Visão de Mundo Relacional

Na sua essência, a Ciência Nativa é uma filosofia e práxis de vida, não uma religião no sentido ocidental. Cajete esclarece que, embora profundamente espiritual, o seu foco não é a adoração de uma divindade transcendente, mas sim a compreensão e manutenção de um conjunto de relações e protocolos essenciais com o cosmos. É uma forma de procurar harmonia e equilíbrio numa teia de vida interligada e em fluxo.

Neste paradigma, a responsabilidade ecológica não é uma escolha ética, mas uma consequência ontológica da própria existência.

Esta abordagem ao conhecimento é facilitada pelo que Cajete designa como a “mente metafórica” (no meu trabalho tenho-a resgatado como psique-mítica). Em contraste com o pensamento ocidental, que historicamente privilegiou a lógica linear e a dissociação entre sujeito e objeto, a mente metafórica integra intuição, imaginação, emoção e espírito no processo de “chegar a conhecer”. É uma forma de pensar envolvida, que vê o universo não como uma máquina a ser desmontada, mas como uma história a ser vivida, um poema a ser sentido. Esta abordagem não representa uma rejeição da lógica, mas sim uma expansão do que constitui evidência, reconhecendo que os padrões do universo se revelam tanto na poesia e no mito quanto na equação matemática.

A tabela seguinte compara as orientações fundamentais da ciência ocidental e da Ciência Nativa, ilustrando as suas abordagens distintas à realidade.

Embora comparemos as estruturas ocidentais e indígenas, é essencial evitar reducionismos. Há práticas científicas ocidentais que já se aproximam de uma ecologia relacional. O desafio é decompor binarismos estéreis e cultivar zonas de intersecção férteis. A Ciência Nativa não é inimiga da ciência moderna, mas sim uma interlocutora crítica e criativa que nos convida a ampliar o que consideramos “conhecimento válido”. A verdadeira transição exige não substituição, mas relação.

Paradigma Científico Ocidental

Paradigma da Ciência Nativa

Orientação: Orientada para o mecanismo e a matéria.Orientação: Orientada para a vida e o cosmos.
Perceção do Mundo: Separação entre humano e natureza; o mundo é um conjunto de objetos.Perceção do Mundo: O universo é uma teia de relações; todas as coisas estão conectadas.
Modo de Conhecimento: Racionalismo e empirismo linear como fontes primárias de verdade.Modo de Conhecimento: Inclui sensação, imaginação, espírito e empirismo holístico.
Objetivo: Controlo, previsão e extração de recursos.Objetivo: Harmonia, equilíbrio e reciprocidade.
Estrutura do Conhecimento: Reducionista, decompondo os sistemas nas suas partes componentes.Estrutura do Conhecimento: Sintético e relacional, compreendendo os padrões que ligam as partes.

Esta distinção fundamental prepara o terreno para explorar a raiz sobre a qual todos os outros princípios da Ciência Nativa são construídos: a interconexão de todas as coisas.

O Primeiro Princípio:

“Todas as Coisas Estão Conectadas”

Para a Ciência Nativa, o universo não é um vazio pontuado por objetos inertes, mas um lugar de “movimento e fluxo constantes”, onde tudo está animado e imbuído de espírito. Este princípio de interconexão é a lei natural mais fundamental e manifesta-se em várias ideias centrais que, juntas, formam uma (para)ontologia relacional.

  • Um Universo Animado Na perspetiva indígena, não existe uma distinção clara entre o vivo e o não-vivo. Objetos que a ciência ocidental classifica como inanimados, como “pedras ou montanhas, são muitas vezes considerados vivos”, possuindo agência e espírito. Esta visão fomenta um profundo respeito por todas as entidades, reconhecendo-as como participantes ativos no cosmos, em vez de recursos passivos.
  • Os Três Mundos Muitas cosmologias indígenas, como a dos Maias, concebem a realidade como composta por múltiplos mundos interligados. Tipicamente, estes são o submundo, o mundo intermédio (onde os humanos residem) e o universo superior. O que é crucial aqui é a compreensão de que as ações num mundo afetam diretamente os outros, criando um imperativo ético para agir com consciência, pois cada ato reverbera por toda a existência.
  • Parentesco com Toda a Vida A relação não é só de interconexão, mas de parentesco. Os seres não-humanos não são recursos, mas sim familiares. Como afirma a ativista Anishinaabe Winona LaDuke, esta visão de mundo reconhece “parentes com barbatanas ou cascos”. Esta ética comunal ambiental, enraizada na ideia de família alargada, exige um nível de cuidado e responsabilidade que transcende a mera gestão de recursos, transformando-a num dever sagrado.

Esta teia de relações, no entanto, não é uma abstração filosófica. É vivida, compreendida e honrada num contexto geográfico específico e sagrado: o lugar.

O Segundo Princípio

O Poder do Lugar

Na Ciência Nativa, o conhecimento é inseparável da paisagem. Não pode ser descontextualizado ou universalizado da mesma forma que as leis da física ocidental. O conhecimento é ecológico, nascido de uma relação íntima e de longa duração com ecologias específicas.

As histórias, as canções, as cerimónias e as práticas de subsistência estão todas ligadas a montanhas, rios e ecossistemas particulares, que funcionam como uma mnemónica viva da identidade e responsabilidade de um povo.

Um exemplo poderoso desta ligação é a relação sagrada do povo Zuni com o seu Lago Salgado, A:shiwi A:wan Ma’k’yay’a. Como descreve Winona LaDuke, este local não é apenas uma fonte de sal; é a morada da Mãe Sal, uma entidade sagrada central para a vida cerimonial e a identidade Zuni. As peregrinações ao lago são atos de renovação espiritual e cultural que reafirmam a sua ligação à terra. Proteger este lugar é sinónimo de proteger a sua própria existência como povo.

Esta profunda ligação ao lugar é sustentada por um pacto de reciprocidade. Não se trata de uma relação de domínio ou de extração, mas de um intercâmbio mútuo. Nas palavras de Cajete, “a terra nutre os humanos e os humanos nutrem a terra”. Este pacto exige que as dádivas da terra sejam recebidas com gratidão e retribuídas através de cuidado, respeito e cerimónia. Isto revela uma distinção fundamental: as responsabilidades sagradas para com um lugar e os seus habitantes, humanos e não-humanos, não são só transmitidas, mas postas em prática através da história e da cerimónia.

O Terceiro Princípio

História, Cerimónia e Renovação

Se o lugar é o texto, então a história e a cerimónia são as formas como esse texto é lido, interpretado e vivido. As histórias de origem e os mitos de criação funcionam como estruturas cosmológicas que codificam o conhecimento ecológico e as responsabilidades éticas. De acordo com Cajete, estas narrativas ensinam lições vitais sobre parentesco, reciprocidade e o lugar da humanidade na ordem cósmica.

Uma metáfora educativa primordial que emerge destas histórias é a do “Caçador de Bom Coração”. Este arquétipo, que remonta a dezenas de milhares de anos, define o pacto espiritual entre os humanos e os animais que lhes dão a vida. O Caçador de Bom Coração compreende que os animais se oferecem voluntariamente aos humanos e que este sacrifício deve ser honrado com respeito, gratidão e a promessa de nunca desperdiçar. Violar este pacto põe em risco a própria relação que sustenta a vida.

A cerimónia é a “prática” desta ciência, a encenação da filosofia. A cerimónia, portanto, torna-se a gramática viva do lugar. Não é um ritual abstrato, mas como a ética da reciprocidade, nascida da paisagem específica, é continuamente posta em prática e reafirmada. Cajete identifica várias funções cruciais da cerimónia:

  1. Consagrar Ações: As cerimónias asseguram que as interações com o mundo natural, como a caça, a colheita ou a construção, são realizadas com a devida autorização e respeito. Oferecer tabaco antes de colher uma planta medicinal, por exemplo, é um ato que reconhece o espírito da planta e consagra a sua utilização.
  2. Criar Empatia: Rituais como as danças de animais não são meras representações. São formas dos participantes encarnarem o espírito e a perspetiva de outro ser, promovendo uma profunda compreensão empática e reforçando o sentimento de parentesco.
  3. Renovar o Mundo: Cerimónias como as de boas-vindas ao salmão na Costa Noroeste do Pacífico são atos de renovação do mundo. Reafirmam o pacto sagrado com a nação do salmão, assegurando a sua continuação e, por sua vez, a sobrevivência do povo.

Através destes princípios de interconexão, lugar e renovação, a Ciência Nativa oferece mais do que um conjunto de conhecimentos; fornece uma filosofia coerente e aplicável para viver de forma responsável no mundo.

Conclusão

Uma Eco-Filosofia para o Nosso Tempo

Os princípios fundamentais da Ciência Nativa — a profunda compreensão de que todas as coisas estão conectadas, que o conhecimento está enraizado no lugar e que a história e a cerimónia são essenciais para a renovação — formam uma visão de mundo coesa e poderosa. Longe de ser uma curiosidade histórica, o paradigma descrito por Gregory Cajete (e tantos outros) revela-se uma “eco-filosofia” viva e complexa, que oferece uma sabedoria prática para a vida. Esta sabedoria não está no passado. Está disponível agora, para quem se dispuser a escutar, respeitar e co-emergir.

Numa era marcada por crises ecológicas e pela alienação social, a Ciência Nativa apresenta uma alternativa fundamental, apesar dos cuidados necessários de não apropriação ou co-optação.

A sua ênfase na relação em vez do domínio, na responsabilidade em vez da exploração e no equilíbrio em vez do crescimento ilimitado oferece uma perspetiva vital. Enquanto a ciência ocidental procura soluções tecnológicas para a crise climática, painéis solares e captura de carbono, a Ciência Nativa questiona a própria premissa relacional que levou à crise, instando-nos a reparar as nossas relações de parentesco com o mundo antes de tentarmos “consertá-lo” com mais tecnologia.

Desafia-nos a ir além de uma única forma de saber e a reconhecer a validade de epistemologias que integram o coração e a mente, o espírito e a matéria, abrindo caminhos para um futuro mais vivo, diverso e interligado para todos os nossos parentes.

Referências

  • As We Have Always Done Indigenous Freedom through Radical Resistance (Leanne Betasamosake Simpson)
  • Native Science Natural Laws of Interdependence (Gregory Cajete) 
  • Recovering the sacred the power of naming and claiming (Winona Laduke) 
  • Restoring the Kinship Worldview Indigenous Voices Introduce 28 Precepts for Rebalancing Life on Planet Earth (Four Arrows & Darcia Narváez)

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