A Viagem de volta da Corporação ao Corpo

Nos muros rígidos do limitado dualismo, hierárquico capacitismo e da objectificação dos corpos na modernidade, perdemo-nos da natureza sagrada da matéria que nos forma e enforma. Do sagrado corpo metamorfo, em constante convulsão pulsante, passámos à rígida mercantilização privada de corpos.

O corpóreo perdeu a alma, o ritmo imanente da vida e da morte, consumiu o chão e a pertença. Corpo também como matéria, de pessoa ou de factos, de “corpo de conhecimento,” a “corpo de água.” A origem de corpus ‘corpo, corpo morto, corpo animal’, ligado a corporare “incorporar, fazer ou moldar num corpo,” pensa-se vir de *kwrep-, raiz proto-indo-europeia que significa “corpo, forma, aparência,” provavelmente uma raiz verbal que significa “aparecer.”

Carne, âmago, cadáver, substância.

Como diz Viveiros de Castro, em Metafísicas Canibais, “a concepção ameríndia suporia (…) uma unidade do espírito e uma diversidade dos corpos.” Pressupondo um ‘continuum’ de corpos ligados em contexto, ao contrário dos corpos isolados e cristalizados da modernidade ocidental. Viveiros de Castro refere que as cosmologias modernas se apoiam na unicidade da natureza, garantida pela universalidade objetiva dos corpos.

O que me leva ao conceito de Corporação, produzido neste contexto necrocapitalista (conceito socioeconómico, formalizado por Subhabrata Bobby Banerjee, definido como uma forma contemporânea de acumulação organizacional que envolve a desapropriação e a subjugação da vida ao poder da morte). Em meados do séc. XV, corporacioun, significava “pessoas unidas num corpo para algum propósito.” Também ‘um todo composto de partes unidas, uma estrutura, sistema, comunidade, corporação, corpo político, uma guilda’. 

O Capitalismo (um sistema económico e político onde a propriedade, os negócios e a indústria são controlados por privados para obter lucro) Corporativo, é o mercado privado dos corpos, caracterizado pelo domínio de mega corporações, literalmente corpos colectivos gigantescos, hierárquicos, burocráticos e inerentemente extractivistas — assenta na violenta e constante escravização dos corpos. Lembrando que no latim corporatus, o particípio passado de corporare quer dizer “fazer ou moldar um corpo, fornecer um corpo” e também “fazer um cadáver, matar.” A prática corporativa moderna assenta na premissa da subjugação sistemática e violenta dos corpos, sejam os de água, os animais ou humanos. Os corpos-lugar são igualmente rompidos e abusados.

Os múltiplos corpos que compõem uma corporação iludem-se pela tecno-burocracia na abstração e exílio das consequências e responsabilidades do seu impacto devorador e insaciável. Corpos tecnocratas colossais, cuja avidez extingue tudo à sua passagem, numa devastação sem tempo de regeneração. Num padrão, que se pensa inevitável e infinito, de perpetuação da escravidão que sujeita a vida a favor do capital, que sistematicamente desmembra e extingue todos os corpos.

Que tenhamos a bravura de fazer o caminho de volta da corporação ao ‘continuum’ dos corpos, da massificação ao lugar, da abstração à presença, da arrogância à responsabilidade. Que saciemos o corpo, este de carne e osso. Este corpo tenro e vulnerável, o que se entrega e que pertence.

🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência. 

Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.