Como qualquer caminho este é um projecto orgânico que evolui e transmuta.
Durante as minhas leituras encontrei um símbolo que se adequa completamente à raiz conceptual do projecto. É um desenho do paleolítico superior, pintado a negro numa taça, que representa duas serpentes enroladas sobre si próprias (Marija Gimbutas, The Language of the Goddess – Staraja Buda, Tomashivka e Sipenitsi, Ucrânia, Cultura Cucuteni, 3900-3700 a.c.).
É um pouco de arte mágica, que representa o princípio feminino pela simbologia da serpente, a complementaridade dos contrários e a lua cheia.
As duas serpentes a circular em sentidos opostos, criam movimento, tempo e dinâmica. Sugerem uma forma arcaica de representação da dualidade e contrários que se complementam. No centro das duas Serpentes, vejo uma Lua Cheia. A representação de uma das fases lunares, neste caso no auge da sua luminosidade, quando há mais receptividade e exteriorização, complementa toda a simbologia presente neste desenho. As minhas mãos tremiam quando escolhi replicar o desenho. Fi-lo com consciência e respeito.
A Serpente detém a sabedoria, mistério e regeneração. Com a sua mudança de pele sazonal, ela representa a mudança e os ciclos femininos. As Serpentes dormem em covas no chão, chamando a si todo o conforto e ligação ao útero da mãe terra.
Dalila Pereira da Costa compreende a Serpente como a energia telúrica, ou seja, sagrada que emana da Terra, original do território de Portugal. A Serpente e a Lua, com associações aos oceanos e marés cíclicas, são os símbolos da paisagem original deste canto da Europa. O Genius Locci e essência que brota deste local ancestral.
Vivo em Portugal e fomos colonizados há quatro mil anos pelos romanos. Esquecemo-nos da cultura da terra que emana deste lugar, apesar de recebermos alguns fragmentos de tradições orais e de contos populares rurais. Este território tem sido povoado desde os tempos do paleolítico. Há pinturas e gravuras rupestres por toda a região.
Do grego antigo, esta terra era conhecida por ser a terra dos mortos, parte da geografia sagrada que liga diferentes dimensões da realidade. As pessoas que aqui viviam eram os Ophides ou o povo das Serpentes. Terra que termina no oceano, no ponto mais ocidental do continente, finisterra – um lugar de antigas memórias rupestres, cerimónias de morte, e cobras sussurrantes – .
Temos muitos restos megalíticos, alguns ainda pintados ou esculpidos. Nos nossos contos populares, temos um antigo ser chamado “Mouras”, velhas forças telúricas e ctónicas (potentes e sagradas energias primevas geradas pelo lugar) que guardam lugares especiais. Elas aparecem nos solstícios e equinócios, ou à meia-noite. São geralmente mulheres que se transmorfam em cobras na sua maioria, mas também em grandes cães negros ou bois. As pessoas locais têm sempre um conto para restos megalíticos, lembrando um ser sagrado a guardar o lugar. São as ancestrais Noivas-Animais que falam da antiguidade da sua devoção, as que originalmente nos ligavam ao lugar, ensinando-nos os seus segredos e ciclos. Seres eco-míticos e sagrados que seguram no fundo da nossa memória a pertença.{1}
Embora estes contos tenham sido cristianizados, e a maioria destes seres tenham sido demonizados, ainda resistem a estar presentes em lendas orais.
Há milénios houve a tentativa de degolar a grande Serpente, de esquecer a sua sabedoria essencial, reza a história que Apolo lhe cortou a cabeça e que foi, como Lilith, expulsa do jardim-do-paraíso.{2} Mas, dos ocultos esconsos selvagens, ela renasce a cada momento e exige ser ouvida de novo. O seu pulsar original reclama presença e atenção. Ela recorda-nos a sabedoria abissal do chão bravio, da terra indomável, do solo primitivo, da ininterrupta alquimia de transformação entre a vida e a morte, dos fios que nos tecem e unem.
A sagrada Serpente é o princípio e o fim do mistério da Vida, o seu poder atemporal está em nós a cada pulsar do coração, no sangue que nos percorre as veias. Sentes?
{1} Falo sobre estas mulheres metamorfas nos livros dos Contos da Serpente e da Lua e no Santuário – Ensaios de Ecomitologia.
{2} “(…) em combates singulares em que um herói solar (ou semideus) derrota e destrói um monstro do caos (quase sempre uma serpente ou um dragão); originando e ordenando assim o Mundo. É Apolo que mata Pyton, a serpente marinha, tal como é Tiamat que Marduq derrota após uma luta portentosa. É Siegfrid que vence Fafnir, Indra que decapita Vrtra ou Târaka; a “serpente marinha adormecida”. É Perseu que corta a cabeça da Medusa. É Thor que luta contra Jormungand, a “serpente do mundo”. É Teseu que derrota o Minotauro. É Hércules que, nos seus doze trabalhos, mata a Hidra de sete cabeças. Hórus, o Deus/Falcão, trespassa a cabeça de Tifão ou do dragão Apófis. É o próprio Javé que cria o Universo após a vitória contra o monstro Raabe. Numa mitologia mais próxima, é São Miguel que combate o Dragão do Apocalipse. É, o ainda persistente, São Jorge e a “Serpente”.” De: A iconografia cristã das virgens e das serpentes/diabos, por Aurélio Lopes, 21 de setembro de 2020, https://mediotejo.net/a-iconografia-crista-das-virgens-e-as-serpentes-diabos-por-aurelio-lopes/
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🌳 Vários livros de diversos territórios, lugares de resgate da polimorfa Imanência.
Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.